quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

ESPECIAL: 65 anos da Revolução Iugoslava, da autogestão e do socialismo com liberdade: a história de um exemplo para o mundo

Há 65 anos atrás, começava a nascer de uma revolucão socialista a primeira experiência prática de autogestão a nível de nação - a autogestão iugoslava, que com seus erros e acertos representa ainda hoje uma experiência valiosa e de conhecimento obrigatório a todos que sonham com uma sociedade livre e sem exploração.
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Nascido em 1918, após a derrota e dissolução do vasto Império Austro-Húngaro na Primeira Guerra Mundial, o Reino da Iugoslávia surgiu da confluência de interesses entre o Pan-Eslavismo (sentimento de união entre os povos “eslavos do sul”) com os diversos nacionalismos locais, que buscavam se proteger mutuamente no instável cenário político da Europa de então. Logo, porém, o reino imergiu em uma série de lutas internas que culminaram na consolidação de uma ditadura monárquica dos sérvios sobre os demais povos. Invadida pela Alemanha Nazista em 1941, a Iugoslávia foi parte anexada, parte dividida em Estados fantoches, sob um clima de caos e sectarismo que deu vazão aos seculares ódios étnicos locais: ao norte, o movimento fascista croata Ustaše (ou Ustashi), sob apoio nazista, iniciou uma campanha de genocídio étnico contra os sérvios; e ao sul, o movimento monarquista sérvio dos Chetnik, que iniciou lutando contra a ocupação alemã, rapidamente tornou-se colaboracionista. Em meio a esse cenário, o Partido Comunista Iugoslavo passou a crescer em popularidade e em influência através da sua guerrilha antifascista (Partisan), que mesmo combatida simultaneamente por alemães, italianos e Chetniks, tornou-se um constante tormento às forças do Eixo, obrigando-as a deslocar grandes contingentes militares para a região. Em 1943, liderados por Jossip Broz “Tito”, os Partisans proclamaram nas montanhas no interior do país o governo da Iugoslávia socialista, que assumiu o poder a nível nacional após a expulsão definitiva dos nazistas em 1945, levada a cabo com a ajuda de tropas britânicas e soviéticas.

No imediato pós-guerra, o governo comunista iugoslavo alinhou-se à União Soviética e afastou-se dos países ocidentais, ao mesmo tempo em que iniciou a estatização generalizada da economia nacional no estilo stalinista. Porém, as contínuas interferências soviéticas contra a soberania iugoslava logo começaram a deteriorar a relação entre os dois países. Por imposição direta de Stalin, que sempre vira com desconfiança Tito e seus camaradas, a União Soviética iniciou uma campanha de hostilidade aberta contra o regime iugoslavo dentro do bloco de países comunistas, culminando com o rompimento entre os dois países em 1948. Com isso, externamente a revolução iugoslava se viu isolada tanto com relação ao ocidente quanto com seus vizinhos comunistas (além de ameaçada por uma possível invasão soviética), enquanto internamente se via confrontada com os problemas trazidos pelos rigores da economia planificada de estilo soviético, que com sua lentidão, ineficiência e controle excessivo sobre a vida dos cidadãos, já disseminava descontentamento entre a população.

Confrontados por tais desafios, os dirigentes iugoslavos se viram obrigados a repensar os rumos de seu processo revolucionário. Nas palavras de Edvard Kardelj, que se tornaria o principal ideólogo da Iugoslávia socialista, “sentimos a necessidade de retornar às origens do pensamento de Marx e da livre associação de produtores por ele proposta”. Assim, a partir daí, os comunistas iugoslavos iniciaram um amplo e profundo processo de desburocratização e democratização da economia e da sociedade iugoslavas que evoluiria pelas três décadas seguintes e ficaria famoso mundialmente com o nome de autogestão (da expressão servo-croata samoupravljane). O primeiro ponto básico de tal processo consistia na idéia de que uma condição necessária para a realização de um socialismo o mais democrático, livre e emancipador possível era a participação direta das pessoas no maior número possível de esferas da vida; excetuando-se o Partido e as Forças Armadas, não apenas fábricas e demais empresas deveriam ser autogeridas (ou seja, administradas pelos próprios trabalhadores ao invés de pelo governo) como também escolas, clubes, associações, até mesmo o Estado, tudo deveria estar sujeito ao princípio da autogestão, disseminando assim relações interpessoais democráticas por toda a sociedade. O primeiro passo para tanto foi a instituição em 1950 da autogestão das fábricas, o que de imediato desviou cem mil burocratas de cargos administrativos para funções produtivas. Também na política importantes reformas foram realizadas, tais como a reforma do Partido Comunista, que ao tornar-se a Liga dos Comunistas da Iugoslávia afastou-se do aparelho estatal e deixou formalmente de ser o partido governante do país para tornar-se uma organização meramente difusora e estimuladora dos valores socialistas em meio à sociedade, tornando a Iugoslávia a primeira nação do mundo sem partidos políticos. Já o segundo ponto básico, que ia de encontro não só com o anterior, mas também principalmente com a essência do projeto político marxista-leninista, consistia em levar a cabo o chamado definhamento do Estado. Se, como Lênin e Marx afirmaram, o ser humano só poderá se tornar plenamente livre e realizado em uma sociedade posterior à socialista, onde não há nem Estado nem classes sociais (portanto, uma sociedade comunista), seria no mínimo um desvio crasso iniciar a construção de tal sociedade pela via contrária, ou seja, reforçando-se o Estado; estaria-se assim repetindo um caminho sem volta rumo a uma versão autoritária e engessada de socialismo que, em todo o mundo socialista, somente a Iugoslávia logrou evitar. Assim, como conseqüência dessa vital percepção, buscou-se reduzir o tamanho do aparelho estatal, principalmente a nível local e regional, substituindo-o aos poucos em suas tarefas e funções por uma crescente sociedade auto-organizada. Socialismo com liberdade através da autonomia, e autonomia através da participação, eram portanto as bases da autogestão iugoslava.

Mesmo após a normalização das relações com o ocidente (1948-50) e com a União Soviética (1955), o processo de autogestão continuou a se aprofundar na Iugoslávia com as reformas constitucionais de 1963 e 1974, que estenderam ainda mais as liberdades civis e o grau de democracia, bem como aumentaram a autonomia das diferentes Repúblicas e Províncias que compunham a federação iugoslava (atendendo às fortíssimas pressões nesse sentido que cresciam especialmente na Eslovênia e na Croácia). Como resultado, a Iugoslávia experimentou entre as décadas de 50 e 70 um desenvolvimento intenso e completo, combinando um forte crescimento econômico com igualdade e um alto grau de liberdade, dentre estas o direito básico de ir e vir para dentro e para fora do país, exemplo único em todo o mundo socialista.

No plano exterior, a Iugoslávia desenvolveu uma postura de neutralidade no cenário mundial da Guerra Fria, se relacionando de forma normal e soberana com ambos os lados em conflito; embora ainda socialista, a liderança iugoslava via claramente que um alinhamento à União Soviética levaria inevitavelmente a uma submissão completa do país aos desmandos de Moscou. Sob a liderança de Tito, o país também teve um papel fundamental tanto como criador quanto como líder do Movimento dos Países Não-Alinhados. Coerente, a política exterior iugoslava não deixou de condenar como inaceitáveis tanto as ações imperialistas dos EUA no Vietnã quanto também a agressão soviética à Tchecoslováquia (1968). Tais atos levaram o país a ser visto pelos demais governos comunistas e por seus simpatizantes mundo afora como um “pária” no mundo socialista, menos porém por seus atos do que pelo perigo em potencial que o exemplo iugoslavo lhes representava: de fato, o resultado mais importante da autogestão iugoslava foi o florescimento naquele país, em um fenômeno único em todo o mundo, de um verdadeiro poder da classe trabalhadora, que contrastava visivelmente com o poder das classes burocratas no restante do mundo socialista. Tal fato tornou a palavra “autogestão” uma verdadeira assombração para as elites governantes do restante do Leste Europeu, o que pode ser comprovado por importantes episódios históricos: em 1968, poucos dias após Tito ser recebido na Tchecoslováquia pelo presidente Dubček e por uma multidão eufórica nas ruas de Praga, tropas do Pacto de Varsóvia invadiram o país, abortando assim as reformas socialistas levadas a cabo pelo Partido Comunista local. A seguir, ideólogos oficiais do recém-restaurado establishment stalinista tcheco iniciaram junto à classe trabalhadora uma campanha de difamação contra a autogestão, afirmando cinicamente que ao negar-lhes tal autogestão, o Estado pretendia “poupar-lhes do desnecessário esforço extra de se auto-administrarem”; da mesma forma, uma década depois, o fechado e ultra-dogmático regime stalinista da Albânia rompia relações com a China maoísta declarando-a “revisionista” e “traidora do socialismo” não por causa da viagem do presidente estadunidense Richard Nixon a Pequim (1971), mas sim anos depois, imediatamente após uma visita oficial de Tito à China (1977). O próprio Tito simbolizava como nenhum outro o modelo iugoslavo de autogestão; embora presidente vitalício, ao longo dos anos 60 e 70 Tito reduziu seus próprios poderes em favor das novas instituições por ele criadas, como a Presidência Coletiva, órgão formado por representantes das oito Repúblicas e Províncias integrantes da Federação Iugoslava, que passaram a se revezar anualmente no cargo de chefe do governo central após a morte de Tito, em 1980.

Nos anos que se seguiram à morte de Tito, porém, os valores de socialismo e de autogestão por ele trazidos passaram a se deteriorar rapidamente: ao desaparecimento da sua liderança carismática e unificadora e à própria crise do socialismo no Leste Europeu se somaram outros problemas específicos à realidade iugoslava, tais como a fraqueza do poder central (fato comum a qualquer federação multiétnica minimamente democrática) e a dependência econômica do país junto ao mundo capitalista (conseqüência do relativo isolamento iugoslavo com relação a seus vizinhos socialistas), fatores que vieram de encontro com a crise global da dívida externa e agravaram suas conseqüências: o crescimento violento da inflação e do desemprego acabaram assim por exacerbar não só as já existentes diferenças entre as cúpulas governantes das repúblicas – Croácia e Eslovênia, mais ricas e desenvolvidas, querendo mais autonomia junto ao governo central, enquanto a Sérvia, maior, mais pobre e atrasada, querendo mais poder – como também ressuscitaram com força máxima as rivalidades nacionalistas entre os diferentes povos iugoslavos. Em meio a esse cenário, se somava também a complexa questão da luta de classes na Iugoslávia: pois o fato é que, embora bastante enfraquecida pelo poder simultâneo da classe trabalhadora oriundo da autogestão, a classe burocrata nunca desapareceu por completo do país, sobrevivendo graças à divisão relativa entre trabalhadores de um lado e governantes e gerentes de grandes empresas de outro. Encontrando na crise dos anos 80 uma oportunidade de suprimir em definitivo o incômodo poder rival dos trabalhadores, as classes burocratas das diferentes repúblicas iugoslavas aumentaram seu poder instigando o ódio nacionalista como forma de propagar ideais direitistas e semear confusão e divisão em meio à classe trabalhadora. Assim, enquanto a Iugoslávia se esfacelava em meio ao ódio étnico e à posterior Guerra Civil (1991-1995), procedia-se na surdina e em todas as partes à destruição da autogestão; sem qualquer resistência, empresas estatais antes sob controle dos trabalhadores eram ou privatizadas ou novamente submetidas ao controle direto do Estado, através de políticas igualmente levadas a cabo até mesmo por líderes tão inimigos e tão diferentes entre si quanto o croata pró-ocidental Franjo Tuđman e o conservador sérvio Slobodan Miloševic.

Atualmente, mesmo dividida e completamente submetida à ordem global neoliberal, a região da antiga Iugoslávia ainda abriga dentro de si resquícios da autogestão. Em todas as ex-repúblicas iugoslavas ainda é possível encontrar empresas autogeridas de pequeno e médio porte, uma semente do poder de classe dos trabalhadores que, embora disperso e enfraquecido, insiste em sobreviver; e todos os anos, especialmente na Sérvia, multidões celebram o aniversário de Tito, mantendo acesa a chama dos seus ideais socialistas. Independente disso, a experiência autogestionária da Revolução Iugoslava jamais poderá ter apagada da História suas inúmeras e impressionantes conquistas: de um país agrário e atrasado, completamente arrasado após a Segunda Guerra Mundial, a Iugoslávia socialista se tornara já nos anos 80 uma nação industrializada, com uma renda por habitante 50 vezes maior que a da época anterior à revolução, além de ter erradicado a miséria e o analfabetismo e alcançado índices de expectativa de vida e mortalidade infantil comparáveis aos dos países mais avançados do planeta: feitos comuns à maioria das nações socialistas, porém com a diferença crucial de que a Revolução Iugoslava alcançou as mesmas conquistas que os seus vizinhos do Leste Europeu sem sacrificar a liberdade de seu próprio povo em contrapartida. Também o julgamento da História é favorável à via iugoslava de socialismo em comparação com a via adotada pelos demais países socialistas da Europa oriental ao se estudar as causas que levaram à derrota da totalidade dos processos revolucionários da região. Pois diferente do socialismo estatizante de estilo soviético, que desmoronou sob o peso incontornável de seus próprios problemas estruturais, inerentes à lógica deste sistema, a grande maioria dos problemas do socialismo de autogestão foram, ao contrário, conjunturais ou próprios da realidade iugoslava, sendo portanto perfeitamente possíveis de serem corrigidos.

Assim, 65 anos após seu nascimento, e mesmo uma década e meia após sua supressão, a Revolução Iugoslava ainda pode ser comemorada como um exemplo ao mundo, por demonstrar na prática que a sua mais valiosa contribuição à Humanidade, o socialismo de autogestão, muito além de ser uma alternativa tanto viável ao capitalismo quanto única na combinação de justiça social com liberdade, também comprovou ser a chave para a questão crucial da criação de um verdadeiro poder da classe trabalhadora, condição esta necessária para a edificação de um socialismo livre, dinâmico e democrático – portanto genuinamente marxista – capaz de evoluir rumo à futura sociedade comunista sem Estado nem classes sociais.

terça-feira, 20 de maio de 2008

Atualidades: Tibet, Kosovo e as velhas ilusões de sempre

Nas últimas semanas, a imprensa internacional tem dado destaque à luta pela independência de duas nações que, embora tão distantes e tão diferentes entre si, guardam dentro de suas problemáticas específicas a chave para o entendimento dos rumos que o mundo segue atualmente. Para tanto, nunca é demais relembrar os caminhos e as razões que levaram nações tão distantes quanto Kosovo e Tibet a ganharem destaque em noticiários do mundo inteiro.

Localizado no centro da península balcânica, o território do Kossovo esteve ocupado por mais de meio milênio pelo antigo Império Turco Otomano. Anexado em 1912 pelo recém formado Reino da Iugoslávia, a população kossovar de maioria albanesa continuou sofrendo sob o domínio estrangeiro, dessa vez por parte dos sérvios, que então controlavam com mão de ferro a monarquia iugoslava. Tal situação só pôde se alterar após a Segunda Guerra Mundial, quando os comunistas chegaram ao poder na Iugoslávia. Guiado pelos princípios internacionalistas de coexistência pacífica entre os povos, o novo governo socialista concedeu ampla autonomia ao território, que experimentou nas décadas seguintes um grande período de paz e prosperidade. Porém, com a crise do socialismo na Europa em fins dos anos 80, o ódio nacionalista reacendeu de forma explosiva na região, e o separatismo kossovar enfim ganhou vigor. Em 1999, alegando que as forças sérvias de Slobodan Milosevic vinham levando a cabo uma política sistemática de “limpeza étnica” contra a população albanesa local, tropas da OTAN lideradas pelos EUA bombardearam Belgrado, forçando a saída dos sérvios do Kosovo, que posteriormente passou a ser ocupado por forças de paz da ONU. Por fim, no início de 2008, o parlamento kossovar declarou sua independência, imediatamente reconhecida pelos EUA e seus aliados.

Já a situação do Tibete, por sua vez, encontra-se em um estado ainda mais dramático. Localizado no extremo oeste da China, junto à cadeia montanhosa do Himalaia, o Tibet declarou sua independência em 1912, sendo novamente invadido e anexado pela China em 1950. No exílio desde 1959, o Dalai Lama (título concedido ao chefe político e religioso do Tibet) organizou sob sua liderança a comunidade de tibetanos exilados, obtendo tamanho respaldo político para o projeto separatista tibetano que, nas últimas décadas, tornou-se "moda" no Ocidente (principalmente nos EUA) defender a causa tibetana frente à dominação chinesa. A questão do Tibete voltou com força aos noticiários nas últimas semanas, quando em resposta à prisão de monges tibetanos pelas autoridades chinesas, uma série de violentas revoltas populares eclodiram na capital Lhasa e em outras cidades da província, levando a uma brutal reação do governo chinês. Pressionado pela mídia e por governos de todo o Ocidente (em especial os EUA), o regime de Pequim tenta a todo custo abafar tão embaraçosa situação, que ameaça seriamente a imagem do país somente alguns meses antes da realização de sua Olimpíada. Até mesmo a cantora islandesa Björk, em um recente show realizado em Xangai, se manifestou a favor da independência tibetana, provocando protestos de autoridades chinesas e promessas de mais censura a artistas estrangeiros.

Tibet e Kossovo, duas regiões tão distantes e tão distintas, não obstante as enormes diferenças de seus desenvolvimentos históricos e de suas problemáticas presentes, guardam importantes semelhanças por detrás de suas aspirações por independência, que é preciso reconhecer, são inegavelmente legítimas, dadas as enormes peculiaridades étnicas, culturais e lingüísticas próprias dessas nações. A situação de ambas as regiões é amplamente divulgada pela mídia ocidental, e seus antagonistas na luta por independência, China e Sérvia, são freqüentemente execrados pela "opinião pública" como "opressores cruéis e ditatoriais", de forma que o separatismo dessas duas nações ganha contornos de "luta do bem contra o mal". Completando essa dicotomia, o governo dos Estados Unidos e seus aliados mais próximos, eternos defensores da "democracia e da liberdade", concedem apoio incondicional a tibetanos e kossovares, atiçando ainda mais a chama separatista destes povos. Isso é o que a grande mídia nacional e internacional nos tem levado a saber nas últimas semanas.

Porém, muito além do que agências de notícias como CNN e Reuters estão dispostas a nos dizer, Kosovo e Tibet guardam entre si outras semelhanças um tanto inquietantes e reveladoras. Pois em momentos como esse, em que tanto líderes do Ocidente quanto a grande mídia agitam de forma tão escancarada a bandeira do separatismo, uma pergunta crucial passa longe dos noticiários: onde estão os EUA e a União Européia quando se é preciso defender a independência de tantos outros povos igualmente oprimidos pelo mundo afora? Onde fica o Ocidente, com seus governos e sua mídia "oficial", quando se é preciso denunciar a situação da Palestina, do País Basco, de Porto Rico, da Irlanda do Norte ou do Curdistão, para ficar apenas em alguns exemplos? Porque artistas como a cantora Björk e o ator Richard Gere, tão prestativos para denunciar a situação do povo tibetano, jamais falam por exemplo sobre o povo do Saara Ocidental, que desde a sua emancipação da Espanha em 1975 padece sob uma cruel dominação militar e econômica perpetrada pelo Marrocos? Porque o Dalai Lama, que tanto gosta de denunciar um suposto "genocídio cultural" promovido pelas autoridades chinesas no Tibet, nada fala sobre a destruição sistemática de valores e culturas perpetrada pela globalização neoliberal nos quatro cantos do mundo, esse sim um autêntico e inegável genocídio cultural? E porque o outro lado dos conflitos do Kosovo e do Tibete não é mostrado? Pouco se falou dos chineses espancados e saqueados pelos tibetanos em Lhasa, tampouco das centenas de sérvios assassinados em 1999 pelos bombardeios da OTAN (que ao contrário do que foi dito, dirigiu-se quase que exclusivamente contra alvos civis) ou pelas guerrilhas albanesas (estas também empenhadas em realizar a sua sanguinária versão de “limpeza étnica”). Nem sequer falou-se dos mais de 200.000 sérvios, romenos e turcos kossovares obrigados pela maioria albanesa a abandonar seus lares para se tornarem “refugiados de guerra”!

Mas qual o porquê dessa política de dois-pesos-duas-medidas levada a cabo pelo Ocidente? Porque a "civilização" vê como legítima a luta emancipatória de apenas dois povos, e não de todos os outros? Aí é que entram as tão inquietantes (e censuradas) semelhanças entre kossovares e tibetanos. Ambos buscam tornarem-se independentes dos dois últimos grandes blocos de contestação política à ordem global encabeçada pelos EUA: a Rússia (que tem como aliada histórica a Sérvia, país que também representa um dos últimos focos de resistência à expansão do neoliberalismo na Europa) e a China. Essa é a explicação. Longe de ser movida por razões humanitárias, a política exterior dos EUA e de seus aliados vê as lutas de tibetanos e kossovares albaneses apenas como mais uma oportunidade de enfraquecer seus grandes rivais e fortalecer o domínio militar, econômico e político do Império estadunidense sobre o planeta, custe o que custar. Isso explica por que, em 1999, tantas mentiras sobre um suposto "genocídio" albanês foram plantadas pela mídia ocidental como justificativa para a guerra contra a Sérvia, mentiras estas devidamente desmascaradas após a ocupação do Kosovo pelas forças da ONU (lembrando bastante a falácia de Bush Júnior sobre a suposta existência de "armas de destruição em massa" nas mãos de Saddam Hussein). O Iraque, aliás, a exemplo de outros povos oprimidos pelo Império e seus aliados, ilustra bem o destino que terão as duas novas nações que aos poucos vão sendo “autorizadas” a existir pelo Imperialismo: tal qual a nação árabe, os recursos naturais do Kosovo tiveram sua exploração “concedida” pela ONU a grandes transnacionais estrangeiras. Tão logo se oficialize a independência de mais este pequeno território dos Bálcãs, onde por herança dos velhos tempos de comunismo ainda há predominância de empresas estatais e cooperativas, o próximo passo a seguir, bem conhecido mundo afora, certamente consistirá em “liberalizar” a economia local (ou seja, mais privatizações e maior precarização do trabalho). Já o Tibet, uma vez conquistando sua “independência”, deixaria de estar sob o guarda chuva da altamente regulada e internamente protegida economia mista chinesa, que tem levado a província a experimentar um progresso econômico acelerado nos últimos anos. Separada economicamente da China, a província se tornaria uma presa fácil para o capital privado transnacional e para as velhas e corruptas elites político-religiosas do antigo Tibet capitalista que, lançadas ao exílio pela Revolução, estão ansiosas por reaver suas antigas posses e privilégios.

O fato é que, ao sistema capitalista internacional liderado pelos Estados Unidos, nunca interessou conceder mais que uma independência e uma liberdade meramente formais a quaisquer povos do planeta. Desde a expulsão dos espanhóis da América Latina no século XIX, passando pela descolonização da África e pela independência de um sem-número de nações no Leste Europeu após o fim da URSS e chegando até os dias atuais, a única coisa que sempre interessou ao capital foi arrancar de seus rivais (sejam eles rivais políticos ou econômicos) tantas terras quanto possível, visando impor às nações recém atraídas à sua esfera de influência um novo tipo de dominação econômica e cultural que na prática pouco difere de uma versão moderna de colonização. Tal processo tem se aprofundado ainda mais nas últimas décadas, com a expansão da globalização e do neoliberalismo coincidindo com o surgimento de um sem número de micro-nações, que à luz da razão não deveriam sequer existir. Um exemplo claro dessa afirmação é a pequena Moldávia, uma ex-república soviética de etnia romena que, após o esfacelamento da URSS, proclamou sua independência ao invés de tornar a fazer parte da Romênia. No fim dos anos 90, o país enfrentou uma inusitada crise política, quando simplesmente nenhum candidato se apresentou para concorrer às eleições presidenciais daquele “país”! A situação do Kosovo não deixa de ser análoga: afinal, se a etnia majoritária do território é composta por albaneses, porque ninguém pensou em reintegrar esta ex-província iugoslava à Albânia?

Longe de representar uma mera coincidência, a rápida pulverização política de regiões inteiras do globo, ocorrida nas últimas décadas, na verdade possui uma razão de ser bastante clara: dividir para conquistar. Eis o lema que o Imperialismo logrou impor ao mundo de forma tão eficiente no fim do século passado e início deste, manipulando antigas intolerâncias e ódios nacionalistas da forma mais oportunista possível a fim de alcançar seus nada nobres objetivos. E aos demais povos oprimidos do mundo, já devidamente atrelados à ordem capitalista mundial (novamente citando, palestinos, bascos, curdos, porto-riquenhos, irlandeses e tantos outros), restam as alcunhas de "terroristas", tão convenientes em tempos de "luta contra o terror", e a certeza de que à atual ordem global pouco importam os seus sofrimentos. E às novas nações que estão por nascer, se seu nacionalismo cego pela sede de liberdade é limitado demais para reinvidicar mais do que uma bandeira e um hino, de tão incapaz de enxergar para onde a reedição de velhas ilusões históricas os vem conduzido, fica ao menos um consolo: ao peixe que vive no aquário, só é possível ser feliz se ele ignorar a existência do oceano.