quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

ESPECIAL: 65 anos da Revolução Iugoslava, da autogestão e do socialismo com liberdade: a história de um exemplo para o mundo

Há 65 anos atrás, começava a nascer de uma revolucão socialista a primeira experiência prática de autogestão a nível de nação - a autogestão iugoslava, que com seus erros e acertos representa ainda hoje uma experiência valiosa e de conhecimento obrigatório a todos que sonham com uma sociedade livre e sem exploração.
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Nascido em 1918, após a derrota e dissolução do vasto Império Austro-Húngaro na Primeira Guerra Mundial, o Reino da Iugoslávia surgiu da confluência de interesses entre o Pan-Eslavismo (sentimento de união entre os povos “eslavos do sul”) com os diversos nacionalismos locais, que buscavam se proteger mutuamente no instável cenário político da Europa de então. Logo, porém, o reino imergiu em uma série de lutas internas que culminaram na consolidação de uma ditadura monárquica dos sérvios sobre os demais povos. Invadida pela Alemanha Nazista em 1941, a Iugoslávia foi parte anexada, parte dividida em Estados fantoches, sob um clima de caos e sectarismo que deu vazão aos seculares ódios étnicos locais: ao norte, o movimento fascista croata Ustaše (ou Ustashi), sob apoio nazista, iniciou uma campanha de genocídio étnico contra os sérvios; e ao sul, o movimento monarquista sérvio dos Chetnik, que iniciou lutando contra a ocupação alemã, rapidamente tornou-se colaboracionista. Em meio a esse cenário, o Partido Comunista Iugoslavo passou a crescer em popularidade e em influência através da sua guerrilha antifascista (Partisan), que mesmo combatida simultaneamente por alemães, italianos e Chetniks, tornou-se um constante tormento às forças do Eixo, obrigando-as a deslocar grandes contingentes militares para a região. Em 1943, liderados por Jossip Broz “Tito”, os Partisans proclamaram nas montanhas no interior do país o governo da Iugoslávia socialista, que assumiu o poder a nível nacional após a expulsão definitiva dos nazistas em 1945, levada a cabo com a ajuda de tropas britânicas e soviéticas.

No imediato pós-guerra, o governo comunista iugoslavo alinhou-se à União Soviética e afastou-se dos países ocidentais, ao mesmo tempo em que iniciou a estatização generalizada da economia nacional no estilo stalinista. Porém, as contínuas interferências soviéticas contra a soberania iugoslava logo começaram a deteriorar a relação entre os dois países. Por imposição direta de Stalin, que sempre vira com desconfiança Tito e seus camaradas, a União Soviética iniciou uma campanha de hostilidade aberta contra o regime iugoslavo dentro do bloco de países comunistas, culminando com o rompimento entre os dois países em 1948. Com isso, externamente a revolução iugoslava se viu isolada tanto com relação ao ocidente quanto com seus vizinhos comunistas (além de ameaçada por uma possível invasão soviética), enquanto internamente se via confrontada com os problemas trazidos pelos rigores da economia planificada de estilo soviético, que com sua lentidão, ineficiência e controle excessivo sobre a vida dos cidadãos, já disseminava descontentamento entre a população.

Confrontados por tais desafios, os dirigentes iugoslavos se viram obrigados a repensar os rumos de seu processo revolucionário. Nas palavras de Edvard Kardelj, que se tornaria o principal ideólogo da Iugoslávia socialista, “sentimos a necessidade de retornar às origens do pensamento de Marx e da livre associação de produtores por ele proposta”. Assim, a partir daí, os comunistas iugoslavos iniciaram um amplo e profundo processo de desburocratização e democratização da economia e da sociedade iugoslavas que evoluiria pelas três décadas seguintes e ficaria famoso mundialmente com o nome de autogestão (da expressão servo-croata samoupravljane). O primeiro ponto básico de tal processo consistia na idéia de que uma condição necessária para a realização de um socialismo o mais democrático, livre e emancipador possível era a participação direta das pessoas no maior número possível de esferas da vida; excetuando-se o Partido e as Forças Armadas, não apenas fábricas e demais empresas deveriam ser autogeridas (ou seja, administradas pelos próprios trabalhadores ao invés de pelo governo) como também escolas, clubes, associações, até mesmo o Estado, tudo deveria estar sujeito ao princípio da autogestão, disseminando assim relações interpessoais democráticas por toda a sociedade. O primeiro passo para tanto foi a instituição em 1950 da autogestão das fábricas, o que de imediato desviou cem mil burocratas de cargos administrativos para funções produtivas. Também na política importantes reformas foram realizadas, tais como a reforma do Partido Comunista, que ao tornar-se a Liga dos Comunistas da Iugoslávia afastou-se do aparelho estatal e deixou formalmente de ser o partido governante do país para tornar-se uma organização meramente difusora e estimuladora dos valores socialistas em meio à sociedade, tornando a Iugoslávia a primeira nação do mundo sem partidos políticos. Já o segundo ponto básico, que ia de encontro não só com o anterior, mas também principalmente com a essência do projeto político marxista-leninista, consistia em levar a cabo o chamado definhamento do Estado. Se, como Lênin e Marx afirmaram, o ser humano só poderá se tornar plenamente livre e realizado em uma sociedade posterior à socialista, onde não há nem Estado nem classes sociais (portanto, uma sociedade comunista), seria no mínimo um desvio crasso iniciar a construção de tal sociedade pela via contrária, ou seja, reforçando-se o Estado; estaria-se assim repetindo um caminho sem volta rumo a uma versão autoritária e engessada de socialismo que, em todo o mundo socialista, somente a Iugoslávia logrou evitar. Assim, como conseqüência dessa vital percepção, buscou-se reduzir o tamanho do aparelho estatal, principalmente a nível local e regional, substituindo-o aos poucos em suas tarefas e funções por uma crescente sociedade auto-organizada. Socialismo com liberdade através da autonomia, e autonomia através da participação, eram portanto as bases da autogestão iugoslava.

Mesmo após a normalização das relações com o ocidente (1948-50) e com a União Soviética (1955), o processo de autogestão continuou a se aprofundar na Iugoslávia com as reformas constitucionais de 1963 e 1974, que estenderam ainda mais as liberdades civis e o grau de democracia, bem como aumentaram a autonomia das diferentes Repúblicas e Províncias que compunham a federação iugoslava (atendendo às fortíssimas pressões nesse sentido que cresciam especialmente na Eslovênia e na Croácia). Como resultado, a Iugoslávia experimentou entre as décadas de 50 e 70 um desenvolvimento intenso e completo, combinando um forte crescimento econômico com igualdade e um alto grau de liberdade, dentre estas o direito básico de ir e vir para dentro e para fora do país, exemplo único em todo o mundo socialista.

No plano exterior, a Iugoslávia desenvolveu uma postura de neutralidade no cenário mundial da Guerra Fria, se relacionando de forma normal e soberana com ambos os lados em conflito; embora ainda socialista, a liderança iugoslava via claramente que um alinhamento à União Soviética levaria inevitavelmente a uma submissão completa do país aos desmandos de Moscou. Sob a liderança de Tito, o país também teve um papel fundamental tanto como criador quanto como líder do Movimento dos Países Não-Alinhados. Coerente, a política exterior iugoslava não deixou de condenar como inaceitáveis tanto as ações imperialistas dos EUA no Vietnã quanto também a agressão soviética à Tchecoslováquia (1968). Tais atos levaram o país a ser visto pelos demais governos comunistas e por seus simpatizantes mundo afora como um “pária” no mundo socialista, menos porém por seus atos do que pelo perigo em potencial que o exemplo iugoslavo lhes representava: de fato, o resultado mais importante da autogestão iugoslava foi o florescimento naquele país, em um fenômeno único em todo o mundo, de um verdadeiro poder da classe trabalhadora, que contrastava visivelmente com o poder das classes burocratas no restante do mundo socialista. Tal fato tornou a palavra “autogestão” uma verdadeira assombração para as elites governantes do restante do Leste Europeu, o que pode ser comprovado por importantes episódios históricos: em 1968, poucos dias após Tito ser recebido na Tchecoslováquia pelo presidente Dubček e por uma multidão eufórica nas ruas de Praga, tropas do Pacto de Varsóvia invadiram o país, abortando assim as reformas socialistas levadas a cabo pelo Partido Comunista local. A seguir, ideólogos oficiais do recém-restaurado establishment stalinista tcheco iniciaram junto à classe trabalhadora uma campanha de difamação contra a autogestão, afirmando cinicamente que ao negar-lhes tal autogestão, o Estado pretendia “poupar-lhes do desnecessário esforço extra de se auto-administrarem”; da mesma forma, uma década depois, o fechado e ultra-dogmático regime stalinista da Albânia rompia relações com a China maoísta declarando-a “revisionista” e “traidora do socialismo” não por causa da viagem do presidente estadunidense Richard Nixon a Pequim (1971), mas sim anos depois, imediatamente após uma visita oficial de Tito à China (1977). O próprio Tito simbolizava como nenhum outro o modelo iugoslavo de autogestão; embora presidente vitalício, ao longo dos anos 60 e 70 Tito reduziu seus próprios poderes em favor das novas instituições por ele criadas, como a Presidência Coletiva, órgão formado por representantes das oito Repúblicas e Províncias integrantes da Federação Iugoslava, que passaram a se revezar anualmente no cargo de chefe do governo central após a morte de Tito, em 1980.

Nos anos que se seguiram à morte de Tito, porém, os valores de socialismo e de autogestão por ele trazidos passaram a se deteriorar rapidamente: ao desaparecimento da sua liderança carismática e unificadora e à própria crise do socialismo no Leste Europeu se somaram outros problemas específicos à realidade iugoslava, tais como a fraqueza do poder central (fato comum a qualquer federação multiétnica minimamente democrática) e a dependência econômica do país junto ao mundo capitalista (conseqüência do relativo isolamento iugoslavo com relação a seus vizinhos socialistas), fatores que vieram de encontro com a crise global da dívida externa e agravaram suas conseqüências: o crescimento violento da inflação e do desemprego acabaram assim por exacerbar não só as já existentes diferenças entre as cúpulas governantes das repúblicas – Croácia e Eslovênia, mais ricas e desenvolvidas, querendo mais autonomia junto ao governo central, enquanto a Sérvia, maior, mais pobre e atrasada, querendo mais poder – como também ressuscitaram com força máxima as rivalidades nacionalistas entre os diferentes povos iugoslavos. Em meio a esse cenário, se somava também a complexa questão da luta de classes na Iugoslávia: pois o fato é que, embora bastante enfraquecida pelo poder simultâneo da classe trabalhadora oriundo da autogestão, a classe burocrata nunca desapareceu por completo do país, sobrevivendo graças à divisão relativa entre trabalhadores de um lado e governantes e gerentes de grandes empresas de outro. Encontrando na crise dos anos 80 uma oportunidade de suprimir em definitivo o incômodo poder rival dos trabalhadores, as classes burocratas das diferentes repúblicas iugoslavas aumentaram seu poder instigando o ódio nacionalista como forma de propagar ideais direitistas e semear confusão e divisão em meio à classe trabalhadora. Assim, enquanto a Iugoslávia se esfacelava em meio ao ódio étnico e à posterior Guerra Civil (1991-1995), procedia-se na surdina e em todas as partes à destruição da autogestão; sem qualquer resistência, empresas estatais antes sob controle dos trabalhadores eram ou privatizadas ou novamente submetidas ao controle direto do Estado, através de políticas igualmente levadas a cabo até mesmo por líderes tão inimigos e tão diferentes entre si quanto o croata pró-ocidental Franjo Tuđman e o conservador sérvio Slobodan Miloševic.

Atualmente, mesmo dividida e completamente submetida à ordem global neoliberal, a região da antiga Iugoslávia ainda abriga dentro de si resquícios da autogestão. Em todas as ex-repúblicas iugoslavas ainda é possível encontrar empresas autogeridas de pequeno e médio porte, uma semente do poder de classe dos trabalhadores que, embora disperso e enfraquecido, insiste em sobreviver; e todos os anos, especialmente na Sérvia, multidões celebram o aniversário de Tito, mantendo acesa a chama dos seus ideais socialistas. Independente disso, a experiência autogestionária da Revolução Iugoslava jamais poderá ter apagada da História suas inúmeras e impressionantes conquistas: de um país agrário e atrasado, completamente arrasado após a Segunda Guerra Mundial, a Iugoslávia socialista se tornara já nos anos 80 uma nação industrializada, com uma renda por habitante 50 vezes maior que a da época anterior à revolução, além de ter erradicado a miséria e o analfabetismo e alcançado índices de expectativa de vida e mortalidade infantil comparáveis aos dos países mais avançados do planeta: feitos comuns à maioria das nações socialistas, porém com a diferença crucial de que a Revolução Iugoslava alcançou as mesmas conquistas que os seus vizinhos do Leste Europeu sem sacrificar a liberdade de seu próprio povo em contrapartida. Também o julgamento da História é favorável à via iugoslava de socialismo em comparação com a via adotada pelos demais países socialistas da Europa oriental ao se estudar as causas que levaram à derrota da totalidade dos processos revolucionários da região. Pois diferente do socialismo estatizante de estilo soviético, que desmoronou sob o peso incontornável de seus próprios problemas estruturais, inerentes à lógica deste sistema, a grande maioria dos problemas do socialismo de autogestão foram, ao contrário, conjunturais ou próprios da realidade iugoslava, sendo portanto perfeitamente possíveis de serem corrigidos.

Assim, 65 anos após seu nascimento, e mesmo uma década e meia após sua supressão, a Revolução Iugoslava ainda pode ser comemorada como um exemplo ao mundo, por demonstrar na prática que a sua mais valiosa contribuição à Humanidade, o socialismo de autogestão, muito além de ser uma alternativa tanto viável ao capitalismo quanto única na combinação de justiça social com liberdade, também comprovou ser a chave para a questão crucial da criação de um verdadeiro poder da classe trabalhadora, condição esta necessária para a edificação de um socialismo livre, dinâmico e democrático – portanto genuinamente marxista – capaz de evoluir rumo à futura sociedade comunista sem Estado nem classes sociais.