sábado, 19 de dezembro de 2009

Nobel de Obama: "um mundo maravilhoso"

Por Elaine Tavares*

Patética cena. Na platéia, de mãos dadas, a realeza. Olhos sorridentes, expressão de gozo e aquela serenidade dos saciados. No púlpito, o arrogante soberano do mundo. Recebia o Nobel da Paz e falava da necessidade da guerra. Nada poderia parecer mais cínico. Justificando a postura imperial dos Estados Unidos, Barack Obama insistia na sagrada missão que este país tem de levar a democracia ao mundo, nem que seja sob o fogo grosso. A imposição da “liberdade liberal” a todo custo, com canhões e bombas.

Grotesca cena, assistida por milhões de pessoas no mundo. Os reis, feito cortesãos, aplaudindo o imperador. E este anunciava a decisão de enviar mais tropas ao Afeganistão, mais mortes, mais destruição, mais dizimação da cultura, da vida. E os lambe-botas, assentindo, extasiados, vendo o dono do mundo, no seu terno vistoso, cuspindo balas. “A guerra é fundamental para preservar a paz...” Que o digam os estadunidenses empobrecidos, os que perderam as casas na crise imobiliária, os que ficaram sem emprego por conta da quebradeira de empresas privadas “competitivas”, os que tiveram de ver seu governo investindo um trilhão de dólares para salvar os bancos, enquanto eles mesmos tem de viver em tendas, sem saúde adequada, sem esperança. Que o digam as gentes dos EUA que observam o Nobel da paz gastar dez bilhões de dólares ao ano com a guerra no Iraque, os que vem seus filhos chegar em caixões.

A guerra dos Estados Unidos não é uma missão confiada por deus para levar boa vida às gentes. A guerra é uma imposição do capital que precisa se expandir. Quando a produção é demais e não há quem compre, é necessário criar alguma destruição para que as empresas possam ter a quem vender. Assim, destruir um país parece ser um bom negócio. Não tem nada a ver com democracia, liberdade e outros destes conceitos bonitos que os cínicos usam para enganar os incautos. O capital lambe os beiços e vai se sustentando mais um pouco, construindo países que foram arrasados pelas bombas.

A teologia que move a sede de poder dos Estados Unidos não nasceu agora, não é exclusividade do jovem imperador. Ela vem de longe na história, e nós, na América Latina, já a sentimos na pele desde quando este país decidiu roubar as terras mexicanas no início do século XIX. Desde lá, as doutrinas de guerra vem assolando nossas vidas, com invasões armadas, invenção de governos ditatoriais fantoches, invasões culturais, invasões empresariais. Tudo isso em nome do “deus” dinheiro, tudo em nome do poder.

Ontem, na entrega do cínico Nobel da Paz, o jovem imperador escrachou a doutrina. Sem pejo. “Não há paz sem a guerra!” E os poderosos – defendeu com seu nariz empinado - tem o direito de impor sua vontade ao mundo. Porque tem os canhões. Michele, vestida como uma imperatriz, deu o toque familiar, limpando tal qual uma dona de casa típica, o fato do marido sob os holofotes. A Globo terminou aí sua matéria, com um riso de admiração no rosto de Bonner e Fátima, eles próprios um casal modelo. E, nas casas, as gentes sorriram. “Quão lindo é esse homem, e quê coragem em defender a guerra!” Enquanto isso, lá longe, no Oriente Médio, as bombas seguem caindo, assim como no Afeganistão, em Honduras, na Colômbia. Mas tudo bem, são só luzes. E é natal...

A razão cínica domina o mundo. Já não há disfarces. Mas eu acredito que uma hora dessas, as gentes acordarão e, decididas, dirão: Já basta! Ou isso, ou a barbárie.

(* texto extraído de carosamigos.com.br)

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Em Santa Catarina (e no Brasil?) a ditadura ainda não acabou

Não deixe a impunidade prevalecer! Clique aqui para protestar contra mais essa tentativa de ressuscitar a ditadura no Brasil.

Nas últimas semanas, um escândalo do tamanho do Brasil estourou em Santa Catarina, quando um pretenso jornalista local, um monstro chamado Luiz Carlos Prates, veio a público fazer uma defesa escancarada e irresponsável da ditadura civil-militar (1964-1985), demonizando o sistema democrático-representativo em que vivemos atualmente e glorificando os anos de chumbo, época em que segundo ele, o Brasil “progredia” e não “andava para trás que nem hoje”. Mais escandaloso do que o conteúdo em si de tais “comentários” é o fato de que todo o descalabro insano desse suposto “jornalista” foi vociferado ao vivo e a cores nos televisores de todo o Estado, através do principal programa da emissora RBS, afiliada da Rede Globo na região sul. Espanta também o fato de que, na gravação, presente no youtube, o próprio apresentador do programa atiça o dito “jornalista” a destilar todo o seu ódio à atual ordem legal associando-a descaradamente aos escândalos de corrupção de Brasília.

A “Novembrada”, alvo do ranço retrógrado
Tamanha apologia ao regime de exceção, torturas e autoritarismo que assolou o Brasil no passado recente, saída da boca de um dos principais porta-vozes de uma importante emissora de TV do país, é algo que pode ser surpreendente e inesperado de início, mas que diante de uma simples análise da nossa História se torna bastante previsível e compreensível, embora não menos detestável. Todo o ódio blasfemado pelo suposto jornalista não foi à toa e tinha um alvo bem claro: discutia-se no programa o aniversário de 30 anos de um dos acontecimentos mais importantes (e infelizmente pouco conhecidos) da história recente, a chamada “Novembrada”, uma grande manifestação contra a ditadura que ocorreu em Florianópolis em novembro de 1979, e que teve a importância histórica de marcar o “começo do fim” do regime ditatorial. A Novembrada, na retórica reacionária do auto-intitulado jornalista, se converte assim de um movimento vital para a superação da página mais negra da nossa história, a uma “reação de perdedores e fracassados”.

Os “avanços” trazidos pela ditadura que insiste em não morrer
É elucidativo que a memória viva da Novembrada inspire tais reações de sujeitos como esse “senhor”. A ditadura não permanece viva somente nos sonhos delirantes de certas mentes doentias e no saudosismo de alguns poucos representantes das camadas mais fanáticas e retrógadas da direita. Ela ainda permanece viva materialmente falando, tanto em sua herança maldita ao Brasil atual quanto no poder e influência ainda hoje conservado por protagonistas do antigo regime. Foi graças à abertura “lenta, gradual e segura” dos militares que logrou-se manter muito do essencial do velho regime nos nossos dias atuais de “legalidade”. Quase a totalidade da nossa atual imprensa “livre e democrática” (incluindo aí, não por coincidência, a rede de televisão do dito jornalista) cresceu apoiando a ditadura. Políticos integrantes do “braço civil” da ditadura seguem no poder através de partidos como DEMO, PP e PMDB. O autoritarismo generalizado incutido em nossa sociedade foi herdado da ditadura, bem como diversos dos nossos problemas atuais encontraram no antigo regime terreno fértil para crescerem e se desenvolverem. Os níveis calamitosos de corrupção de hoje em dia tiveram um enorme estímulo no falso moralismo e na falta de transparência e de liberdade de expressão comum a todas as ditaduras. A violência generalizada no campo e nas grandes cidades tem relação direta com o crescimento sem precedentes da miséria e da desigualdade durante a ditadura. A ineficiência e a fragilidade institucional do Estado brasileiro encontra raízes nas duas décadas de inexistência de legalidade no Brasil. Nossa extrema dependência externa às empresas transnacionais e às especulatas do mercado financeiro internacional ganharam reforço durante a ditadura, que entregou o nosso país às corporações privadas estrangeiras e multiplicou por cem a nossa dívida externa... Tudo isso demonstra não só o tamanho do retrocesso que a tão amada ditadura do “Sr” Prates trouxe ao Brasil como também atesta o quanto esta ainda paira sobre o Brasil como uma sombra negra que insiste em não se dispersar.

Apesar de tudo, liberdade!
No entanto, a despeito de tais fatos (e graças principalmente à mobilização popular), o fim da ditadura e a Constituição de 1988 marcaram um grande avanço para o país no sentido em que se desconstruiu muito do que o antigo regime tinha de pior. Veio a liberdade de expressão, o voto direto para a escolha de nossos governantes e a perseguição política tornou-se ilegal, tudo isso abrindo espaço para um maior protagonismo popular na escolha dos rumos do país e aumentando assim enormemente a soberania do povo brasileiro sobre seu próprio destino, o que de fato fez avançar, ainda que de forma incompleta (e a despeito de suas falhas), a democracia no Brasil. Porém, nada disso sensibiliza o suposto jornalista, para quem “verdadeira democracia” havia nos tempos do presidente Figueiredo, o líder da ditadura execrado pela Novembrada, o mesmo que disse preferir cheiro de bosta de cavalo ao cheiro do povo e que, sob a insana e desfigurada lógica do “Sr” Prates, aparece de “pobre vítima” que “morreu pobre”...

Do que eles realmente têm saudade
Aí é que se chega a outro ponto bastante elucidativo sobre o comportamento do “Sr” Prates e de seus patrões da RBS e da Globo. Não é a corrupção ou a violência atuais que incomodam esses “senhores”. É a vontade da maioria, a mobilização popular dos (não por coincidência, cada vez mais criminalizados) movimentos sociais e o espaço bem maior que o regime atual dá às lutas sociais e à busca por nossos legítimos direitos, isso é o que realmente incomoda tais “senhores”. É da “democracia dos ricos” que eles sentem saudade. Eles em questão, diga-se de passagem, são muito mais do que apenas um punhado de loucos. Os saudosistas da ditadura que insiste em não acabar por completo ocupam hoje muitas das posições mais influentes no Brasil, tanto na mídia quanto no Estado e nas grandes empresas, e estimulados pela impunidade aos crimes da ditadura, não hesitarão em tentar ressuscitar a ditadura caso tenham uma oportunidade. Porém há um alento. Se democracia significa “andar para trás”, então podemos ter certeza de que, a despeito e para a decepção de “senhores” como esse tal pretenso jornalista, o povo brasileiro, que é sim um povo bravo e lutador, irá garantir que o nosso país siga firmemente, e cada vez mais, andando “para trás”.