sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

O capitalismo e a crise, parte 2: o dólar, a dívida e as crises vindouras.

Diferente do que a primeira parte desta série de dois artigos podia levar a crer, a pergunta crucial dos dias atuais não é se "a crise acabou ou não", mas sim "quando e como virá a próxima crise". Sem a pretensão de querer fixar datas para os futuros desastres econômicos globais, a segunda e última parte dessa série de artigos visa antes de tudo, e tal como a parte anterior, contribuir para a formação teórica dos militantes anticapitalistas preocupados na vital questão de compreender para transformar. Dessa forma, através do estudo da crise do Império norte-americano e do crescente endividamento global, o presente artigo vai além da análise superficial e setorizada do sistema financeiro apresentada no artigo anterior, destrinchando na base da "economia real" os mecanismos propulsores das futuras crises do sistema capitalista internacional. O capitalismo, tal como ficará claro ao longo dessas linhas, é um sistema que adoece e envelhece em ritmo acelerado, exigindo das forças anticapitalistas do mundo todo um aguçamento do seu conhecimento técnico acerca do sistema, dando-lhe a capacitação necessária para uma precisa e eficaz ação política transformadora e permitindo assim que a Humanidade sobreviva a um possível (e não tão distante) colapso do capitalismo.


A realocação da produção global

Iniciado com o tímido processo de industrialização de certos países periféricos no pós 1945, o processo de realocação da capacidade industrial mundial ganhou vigor a partir da década de 80, com a conversão dos EUA em grande importador de produtos industrializados. Quem melhor se aproveitou disso foram as nações do oriente (Japão, Coréia do Sul e “tigres asiáticos” nos anos 80, China dos anos 90 em diante), que entraram em uma fase de crescimento econômico acelerado basicamente exportando para os EUA. Tal comportamento da economia norte-americana demonstraria ser uma forte tendência dos países centrais quando, em busca de mão-de-obra mais barata e de repositório para seus capitais excedentes, a Europa ocidental e o Japão seguiram o movimento estadunidense, deslocando seus parques fabris (em especial naqueles setores intensivos em mão de obra) para as regiões periféricas do mundo capitalista: Leste Europeu, Índia, América Latina e, principalmente, China e Sudeste Asiático, foram com isso se convertendo nas grandes manufaturas produtoras primárias da riqueza global, arcando com todas as conseqüências em termos de poluição e hiperexploração humana que os ideólogos do capital diziam ter sido superadas pelo “capitalismo desenvolvido” (que na verdade, apenas exportou seus problemas para a periferia). Simultaneamente, enquanto os países periféricos iam se tornando lixões, armazéns de mão de obra barata e receptores dos capitais excedentes dos países centrais, muitas dessas nações do dito “primeiro mundo” (tais como EUA, Grã-Bretanha, França, Espanha e, mais recentemente, até mesmo o Japão!) passaram a ser consumidores da riqueza produzida no dito “terceiro mundo”. A situação de tais nações se sustenta até hoje em parte pela força dos seus sistemas financeiros por um lado, e por outro pela situação de credores das enormes dívidas externas de muitos desses “exportadores periféricos”. No caso específico do Brasil, um país essencialmente exportador, os sucessivos saldos comerciais positivos foram suplantados ao longo dos últimos 20 anos por também sucessivos saldos negativos na balança de pagamentos (aí incluso o chamado “serviço da dívida”). Assim, em anos recentes o Brasil vinha na prática entregando sua riqueza aos países centrais de graça, recebendo em troca mais dívidas!

Em suma, o mundo tem presenciado nas últimas décadas um crescente deslocamento da capacidade produtiva global em direção aos países periféricos, com o crescimento do peso econômico “produtivo” de nações pobres (China, Brasil, Índia, etc.) simultâneo a uma tendência contrária em quase todos os países centrais. Estes países, embora ainda detenham dentro de suas fronteiras muitos dos setores mais avançados da indústria mundial (e além delas, ainda sejam proprietários de grande parte das indústrias das nações periféricos), vêm passando por um processo de crescimento relativo da importância dos seus sistemas financeiros com relação aos setores produtivos de suas economias. Tal quadro chega ao extremo justamente no pais que é o núcleo do sistema capitalista internacional.


Estados Unidos, o grande parasita do mundo.

Pra entender como o Império estadunidense alcançou a condição de o grande parasita do mundo, é preciso ter consciência de que um dos pilares da atual ordem capitalista mundial consiste na aceitação global do dólar como moeda internacional, algo que por vários motivos nasceu depois da Segunda Guerra Mundial e se mantém até hoje. A moeda mundial não é do mundo, mas sim de um único país, os EUA, o que proporciona ao gigante do norte uma vantagem decisiva para a manutenção do seu status de senhor do planeta. Tal como as hordas para os khans mongóis, as legiões para os césares de Roma ou as indústrias para o Império Britânico, a grande arma com a qual os EUA hoje conquistam e saqueiam o mundo é o dólar.

De fato, a imposição da moeda norte-americana como a moeda do mundo, sendo um princípio econômico genuinamente imperialista, tem proporcionado nas últimas décadas a bóia na qual o Império se agarra para salvar do afogamento a sua cada vez mais deteriorada dominação mundial. Uma economia exportadora até o final dos anos 60, os EUA logo passaram a acumular sucessivos déficits (saldo negativo) em sua balança comercial de produtos, que girava na casa dos 100 bilhões de dólares em 1990, mas que em 2008 alcançou a assombrosa cifra de 820 bilhões de dólares! Isso equivale a quase um terço da parcela produtiva (indústria e agricultura) do PIB estadunidense, de forma que uma imensa parcela do consumo interno norte-americano vem de fora do país!

A nós, isso não seria um problema, desde que todo esse super consumo imperial suprido pelos súditos do mundo inteiro fosse pago pelos EUA, da mesma forma que faz qualquer outro país que importa mais do que exporta. Acontece que eles não pagam.

Por mais escandaloso que isso possa parecer, o fato é que o Império pode se dar ao luxo de ter saldo negativo de centenas de bilhões de dólares na sua balança comercial todos os anos sem mais problemas, simplesmente porque o país é o dono da moeda do mundo! Conforme o presidente do BC estadunidense, Bem Bernanke, explicou com toda o deboche e arrogância imperial que faz jus ao seu cargo, para tapar os rombos anuais em suas contas, “os EUA dispõem de uma tecnologia chamada impressora, que lhe permite produzir tantos dólares quanto precisar e sem custo”. É isso. Para pagar seus monstruosos déficits na balança comercial e na conta corrente, para pagar os déficits de centenas de bilhões de dólares no orçamento de seu governo, basta aos EUA emitir mais dólares! Assim, países exportadores (e pobres) como Brasil, China e Índia mandam o suor do trabalho de seus povos literalmente de graça pro “grande parasita” do norte!

Mais do que permitir calotes comerciais, tal vantagem nada honesta, a de ser dono da moeda do mundo, permite também que o Império se saia de crises como a atual imprimindo mais dólares. Permite também que o país faça a rolagem de sua cada vez mais colossal dívida imprimindo mais moeda – algo que em outro país só faria gerar inflação. Porém, isso tudo não tem um limite? Até quando o mundo vai aceitar ser entupido por mais e mais dólares? A busca por tal resposta acabará por lançar mais luz sobre a realidade do moderno capitalismo global e de suas crises.


A lenta agonia do salva-vidas do Império.

Talvez a maior prova do quanto que o próprio regime norte-americano percebe ser o dólar o “último pilar” de sua dominação global foi dada no começo desse século, quando o ditador iraquiano Saddam Hussein propôs que a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) substituísse o dólar pelo euro como moeda de transações da organização. Se tal medida fosse levada a cabo, isso significaria um duríssimo golpe nas pretensões hegemônicas do dólar, dado o peso do petróleo na economia global e a extrema dependência do Império às importações desse recurso energético. A reação imperial a essa ameaça ao seu domínio foi enérgica. Em 2003, usando a desculpa das jamais encontradas armas de destruição em massa, os EUA invadiram o Iraque, e a seguir, Saddam foi mandado para a forca por sua ousadia...

No entanto, nem mesmo a brutal violência da maior potência militar da Terra poderão conter a longo prazo o definhamento do dólar. Por conta dos sucessivos déficits comerciais e orçamentários dos EUA (e da política de tentar cobri-los emitindo mais moeda), o dólar tem se desvalorizado contínua e inexoravelmente ao longo das últimas décadas, situação que se agrava sempre que o Império se aventura em novas guerras de saque e conquista (foi assim no Vietnã nos anos 70, e o é atualmente no Iraque e no Afeganistão) e sempre que novas crises se abatem (só na atual crise, o governo estadunidense desembolsou 1,4 trilhão de dólares de “ajuda” para a economia!). Quanto mais se debate, mais fraco o Império fica.

Mas o que isso tudo tem a ver com as crises do capitalismo?

A tendência dominante e inevitável para o futuro do capitalismo é de que o dólar perca cada vez mais espaço no comércio internacional para outras moedas, podendo num futuro próximo perder o posto de moeda mundial para o euro, conforme admitiu o próprio ex-presidente do Banco Central norte-americano, Alan Greenspan. Embora a China se recuse a usar o poder demolidor de suas reservas de 2 trilhões de dólares para liquidar o valor do dólar (e por tabela, o próprio Império estadunidense), autoridades de Pequim têm cada vez mais sinalizado que no futuro próximo pretendem substituir parcelas crescentes de suas reservas em dólar por reservas em outras moedas mais fortes do que a norte-americana, como o euro. Indo mais além, economistas como o Prêmio Nobel Paul Samuelson acreditam ser inevitável que, no futuro, uma rejeição massiva do dólar arraste o mundo para... Uma grande crise econômica!

Fica claro agora porque o salva-vidas do Império poderá ser também o seu carrasco!

Até agora, o Apocalipse tem sido evitado porque o mundo não pretende abrir mão do dólar como moeda de transações internacional, não porque eles têm ganho com o dólar, mas sim pelo que eles têm a perder sem a moeda estadunidense: pois dada a estreiteza das relações comerciais inter-nações no capitalismo globalizado, é inevitável que, quando o Império cair, ele leve o mundo junto. Assim, pelo menos enquanto não puderem controlar as conseqüências, nem a China vai querer usar suas reservas de dólares para destruir os EUA, nem a Europa vai tentar fazer do seu euro a nova moeda do planeta, e assim todos ficam felizes com a condição de “parceiros” dos Império! Mas e se ninguém, nem Pequim nem Washington, conseguir mais segurar o colapso do dólar? Este é o momento de analisar outra importante fragilidade do capitalismo moderno.


O mundo e o Império afogados em dívidas.

O drama da dívida do Brasil, com seus juros impagáveis e acordos do Diabo com o FMI, tão conhecidos por nós brasileiros, está longe de representar exceção em um mundo cada vez mais endividado. O total de dívidas das nações do mundo gira hoje em torno de 45 a 60 trilhões de dólares! Países como Itália, Canadá e Japão já têm dívidas totais superiores ao tamanho de seus PIB’s (chegando no caso dos nipônicos a quase o dobro do PIB). E há países europeus como Grã-Bretanha, França, Espanha e Grécia cujo endividamento já alcança níveis calamitosos – no caso grego, só não se declarou moratória até agora porque senão se arrisca carregar a União Européia junto ralo abaixo.

No entanto, quando se fala do Império estadunidense, o problema da dívida adquire proporções assombrosas.

Em termos absolutos, os Estados Unidos são de longe o país mais endividado do mundo. O total que o governo federal estadunidense deve a outros governos e empresas nacionais e estrangeiras fica em torno de 12 trilhões de dólares (cerca de 90% do PIB do país)! E há inclusive estudos independentes que apontam para uma dívida ainda maior, cerca de 56 trilhões de dólares, o que colocaria a dívida total dos EUA igual ao endividamento total do restante do mundo! O irônico é que os períodos de maior crescimento da dívida pública estadunidense ocorreram justamente sob os governos de dois próceres do “estado mínimo” neoliberal, Ronald Reagan (1980-1988) e Bush Jr. (2000-2008)... Isso não é coincidência, a essência do Estado neoliberal (ser “mínimo” para o povo e “máximo” para os capitalistas) explica como o governo do Império alcançou tão assombroso endividamento. A forma como o governo estadunidense “socorreu” o sistema financeiro durante o auge da crise atual ilustra bem isso. Com a crise, enquanto ao povo sobrou desemprego e miséria, aos capitalistas “grandes demais pra falirem” os ganhos foram enormes! Grande parte da ajuda do governo dos EUA à Wall Street foi feita da seguinte forma: o governo emprestava a juros quase zero para os bancos “em dificuldade”, que depois usavam tal “ajuda” para comprar títulos de dívida emitidos pelo governo para bancar a recuperação do restante da economia. Esses títulos são o melhor “fundo de investimento” que existe, porque pagam bons juros e são bancados pelo devedor mais confiável que existe, o Estado – que assim na prática se endividou duplamente, não só pela emissão desses títulos mas também porque, com essa “troca”, assumiu as dívidas dos bancos e das imobiliárias. Longe de ser um “empréstimo”, que nem cansou-se de divulgar na mídia na época, o Estado na verdade deu dinheiro de graça aos grandes capitalistas, recebendo “como pagamento” as dívidas destes... Dívidas estas por sinal criadas por incompetência e irresponsabilidade desses mesmos capitalistas, que aprontaram e no final ainda saíram ganhando. Agora faz sentido! Alguém tinha mesmo de estar ganhando com esse negócio de endividamento meteóricos...

Porém, nos EUA a situação do endividamento é ainda mais porque não só o Estado, mas principalmente o povo, está com a corda no pescoço de tão endividado. E isso não só revela a verdadeira causa da atual crise mundial como também traz pistas importantes para as futuras crises do capitalismo.


A dívida privada dos EUA, o verdadeiro estopim da crise atual.

O endividamento total das famílias estadunidenses, que até a década de 1980 se mantinha em um patamar estável e reduzido, disparou a partir de então de forma descontrolada, dobrando aproximadamente a cada década e crescendo quase oito vezes o seu valor inicial até alcançar a cifra presente de cerca de 14 trilhões de dólares – mais do que a própria dívida governamental! E desse volume todo, mais de 75% são de dívidas com... Hipotecas! Assim, não é de espantar que o verdadeiro estopim da crise atual, a pior nos últimos 80 anos, não foram os subprimes que nem tanto se falou na grande mídia burguesa, mas sim o alto grau de endividamento do povo norte-americano!

E essa conta que estrangula o povo da nação que é o centro do sistema capitalista global só tende a aumentar. Tudo graças ao processo de superexploração do trabalho que vem se agravando de forma assombrosa nos EUA desde a década de 70! Até esta época, o crescimento da produção e dos lucros dos capitalistas era acompanhado de um aumento dos salários dos trabalhadores e do consumo. Porém, a partir daí, os lucros do capital e a produção do trabalho continuaram a crescer, mas os salários reais se mantiveram estagnados! Surgiu então um sério descompasso, crescente ano após ano até os dias atuais, entre o que os trabalhadores produziam e o que eles podiam comprar, com seu salário, daquilo que eles próprios produziram! Assim, não é de espantar que hoje, nos EUA, os 10% mais ricos ganhem 15 vezes mais do que os 10% mais pobres! De fato, as elites estadunidenses lograram impor ao seu povo um crescimento brutal da exploração, que aumentou de forma assombrosa os lucros dos capitalistas ao mesmo tempo em que gerou um dilema: se a produção aumentava mas os salários reais não, com quê dinheiro o povo seguiria comprando? A saída se deu por um crescimento vertiginoso do endividamento do povo, levando as dívidas das famílias norte-americanas a crescer até a assombrosa casa dos trilhões de dólares!

Todo esse endividamento do povo do Império, mais o crescimento descomunal dos lucros do capital, alimentou um processo de “financeirização” da economia global como jamais se vira antes. Pois enquanto os lucros excedentes do capital produtivo iam parar no sistema financeiro, este compelia o povo norte-americano (cada vez mais endividado, extenuado pela hiperexploração e ansioso por afogar suas mágoas no consumismo) rumo à tomada de mais e mais empréstimos, criando cada vez mais instrumentos sofisticados e condições favoráveis ao endividamento – sem o qual o novo sistema de exploração acelerada não sobreviveria. Incentivado pelas autoridades financeiras, o grande negócio do “gerenciamento da dívida” cresceu, engoliu o mundo através do neoliberalismo e inaugurou a era do “cassino global”, em que especular e “gerir a dívida” se tornou o negócio. Sempre que as forças caóticas do “livre mercado” financeiro-especulativo aproximavam a economia mundial do colapso, como nas inúmeras crises “financeiras” dos anos 90, os Bancos Centrais do mundo intervinham injetando mais dólares no mercado, aumentando o endividamento estatal e acalmando as coisas. Assim os capitalistas continuaram, crentes de que seu sistema do “cassino global” era perfeito e infalível. Ledo engano.


A agonia derradeira do Império.

É irônico notar que, por conta do seu endividamento crônico e irresponsável, de hoje em diante os EUA vão passar a sofrer cada vez mais do seu próprio veneno neoliberal, tendo que tomar medidas de “austeridade fiscal” no mesmo estilo daquelas que o Império impôs à América Latina via FMI, com as mesmas conseqüências desastrosas em termos sociais e econômicos. Serão cortes de investimentos sociais de um governo que já não gasta praticamente nada com seu povo, menos gastos com subsídios a uma economia já cambaleante e mais impostos, criando um cenário que conduzirá a uma perda acelerada do peso e da importância da economia estadunidense no mundo. Por conseqüência, os EUA sofrerão de uma perda ainda mais importante, a de influência política, medida pelo poder de seu exército. É evidente que os gastos colossais com a imensa máquina de guerra estadunidense, hoje responsável por mais da metade das despesas militares do mundo, também terão que ser drasticamente reduzidos, levando inevitavelmente a uma queda vertiginosa da capacidade de agressão imperial a outras nações distantes e à capacidade do Império em manter presença militar em todos os continentes do mundo. Com o tempo, o endividamento do Estado norte-americano obrigará o fechamento de bases militares no exterior, cortes drásticos nos gastos com novos projetos militares e redução da capacidade bélica imperial como um todo. Será o fim do exército mais poderoso que o planeta já viu, derrotado não por seus inimigos, mas sim pelo colapso do próprio sistema capitalista ao qual este serviu decisivamente por séculos – marcando assim o fim definitivo dos EUA enquanto Império global.

Porém, paralelo a isso, o outrora Império mais poderoso da História irá nas próximas décadas se afundar cada vez mais numa espiral descendente que pode lhe custar muito mais do que a simples perda da hegemonia global – inclusive afetando o destino de toda a Humanidade.


Conclusão: o dólar, a dívida e o risco de crise geral e guerra.

Juntando-se enfim as peças do que agora já se sabe sobre o dólar e a dívida, revela-se o mecanismo central da bomba relógio que levará ao fim do Império e – muito possivelmente – a novas e cada vez mais violentas crises do capitalismo internacional.

A lógica do capital é cruel para com seus próprios mentores: com o endividamento acelerado dos EUA, cada vez menos capitalistas vão querer “investir” na compra de títulos de dívida estadunidense, o que desvaloriza o dólar, diminui a aceitação global da moeda e, portanto, diminui a capacidade dos EUA em continuar “rolando” o que deve pela impressão de mais dólares. Isso, somado aos riscos internos da desvalorização da moeda (como a inflação), obrigará o governo norte-americano a oferecer juros cada vez mais generosos aos seus títulos de dívida (ou seja, mais endividamento) e, o que é pior para eles, obrigará o seu banco central a elevar cada vez mais as taxas de juros de sua economia para segurar o valor do dólar, o que no entanto irá estrangular o acesso ao crédito, algo fatal para uma economia cada vez mais endividada e dependente de empréstimos. Com menos crédito, agrava-se assim o endividamento do Estado e do povo norte-americanos, e novas ondas de inadimplências detonarão novas crises, que e se alastrarão com força pelo mundo. E a cada crise, agravam-se as tensões sociais e políticas no mundo dominado pelo capital e aumenta a fragilidade do Império e do sistema financeiro internacional a novas crises, com redução crescente da capacidade dos EUA e de seus aliados em enfrentar os efeitos das novas crises.

Foi exatamente o que aconteceu na crise atual, que começou quando o Banco Central estadunidense elevou as taxas de juros para conter a inflação (ou seja, perda de valor do dólar), levando a um estrangulamento do crédito, inadimplência generalizada e quebradeira geral dos bancos credores. E para sanar os efeitos da crise, os países centrais tiveram que recorrer a um endividamento colossal. Só nos EUA, de 2007 a 2009, a dívida pública saltou de 8,9 trilhões a 12 trilhões, indo de 65% a 90% do PIB...!

Não há muito o que se fazer contra essa espiral descendente dentro das regras do jogo. Mas em seu desespero, o Império agonizante poderá se ver tentado a mudar as regras desse jogo, à força.

Está claro que, apesar de até agora os EUA terem rolado suas crescentes dívidas imprimindo mais e mais dólares, chegará um momento que não será mais possível fazê-lo, e daí os EUA não poderão mais pagar suas dívidas. E dentre os governos credores dos EUA, o maior de todos (com uma conta de 800 bilhões de dólares) é a... China! Existe aí, portanto, um risco evidente à paz mundial: mais difícil do que imaginar o Império aceitando pacificamente o seu próprio desmantelamento, só mesmo imaginar que o país mais poderoso da Terra aceitaria calmamente ser penhorado pelo “inimigo”! Quando chegarmos a essa situação, isso poderá significar a Terceira Guerra Mundial. Seria o eixo EUA-Inglaterra-Israel contra o resto do mundo – envolvendo talvez até o Brasil, que pasmem, é o sexto maior credor dos EUA (atrás de Japão, Inglaterra, exportadores de petróleo e bancos centrais do caribe), com uma conta de 150 bilhões de dólares esperando para nos ser paga!


Considerações finais: a "crise final" do sistema só depende de nós.

Com essas informações, qualquer tentativa de antever o futuro que vá além da tendência geral de definhamento do Império e do sistema capitalista global por ele comandado é puro jogo de adivinhação. Não obstante, certos fatores dão conta de um futuro negro para o capital:

- O endividamento colossal das economias centrais do capitalismo moderno, que agrava a fragilidade destas e reduz cada vez mais sua capacidade de superar novas crises;
- A persistente dependência do mundo periférico para com os cambaleantes países centrais, que embora tenha reduzido nos últimos anos, ainda tem força para permitir o derramamento das crises para os países do chamado “Terceiro Mundo”;
- O fato de que, mesmo com essa crise gigantesca, nada foi feito em termos de criação de novos mecanismos de regulação do sistema financeiro (como se fez depois de 1929 e no pós-1945), mostra que todo o esforço de trilhões de dólares despendido pelo mundo até então serviu tão-somente para combater os efeitos, e não as causas desta crise, que assim não foi sanada, mas sim “empurrada com a barriga” pro futuro. Pior, não só as causas reais da crise não foram atacadas como foram de fato (pela força do aumento do endividamento global) agravadas!
- O anárquico e destrutivo sistema financeiro global, que funciona como correia transmissora e amplificadora das crises, deve se fortalecer ainda mais no futuro, pois com o endividamento crescente do planeta, o mundo vai se tornar cada vez mais dependente de um parasitário sistema financeiro.

Tendo em vista todos esses fatores, é bastante razoável supor que novas grandes crises econômicas nos aguardam no futuro próximo, que serão multiplicadas ainda mais em seu potencial devastador pela Crise Ambiental que já se avizinha. Podemos confiar neste fato, se não por tudo que foi exposto até aqui, ao menos por se conhecer a natureza irracional e auto-destrutiva do capitalismo.

O que isso tudo significa? Depende de nós. Uma nova grande crise pode levar a uma ascensão da xenofobia e do fascismo como há muito não se via; pode levar ao esmagamento total dos processos revolucionários em curso e arrastar o mundo para a Terceira Guerra Mundial. Ou pode também, por outro lado, representar a tão falada crise final do sistema capitalista, com sua destruição definitiva e substituição por um sistema de auto-planejamento consciente feito pela e para a sociedade (e não mais por e para uma classe dominante minoritária, seja ela burocrática ou burguesa). Pode ser, em outras palavras, a última grande oportunidade histórica da Humanidade de superar o capitalismo rumo ao socialismo, oportunidade esta que, caso não seja aproveitada, nos deixaria com poucas opções dentro da sentença luxemburguista de comunismo ou barbárie. Tudo depende da nossa capacidade de assumirmos o nosso “fardo histórico” de lutar pela transformação social. Para tanto, é preciso que nós, comunistas, socialistas revolucionários e anti-capitalistas do mundo inteiro, em especial nós do mundo periférico, o elo mais fraco da corrente do capitalismo mundial, sejamos muito mais organizados, disciplinados e, acima de tudo, politicamente maduros – nada de sectarismos bobos nem de tentar "recriar o passado". Além disso, o que também é vital, torna-se imprescindível que nos capacitemos tecnicamente, incluindo nas ciências econômicas, de forma que possamos “compreender os sinais” das crises vindouras a fim de, tal como Marx e Lênin ensinaram, saber exatamente quando e como agir.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

O capitalismo e a crise, parte 1: o sistema financeiro global e a crise atual.

O que foi a chamada crise “financeira” de 2009? A pior crise econômica que já se abateu sobre o mundo desde 1929 já acabou ou ainda voltará? Quais as lições e conseqüências para o futuro que essa crise proporciona, e o que ela nos ensina sobre o capitalismo? São perguntas que esta série de dois artigos visa responder apenas parcialmente, quando não deixar totalmente em aberto. Não viso com isso mais do que apenas apresentar uma introdução básica ao entendimento do capitalismo e da dinâmica de suas crises, de forma a contribuir para a formação de militantes políticos preocupados com o problema crucial de compreender o capitalismo a fim de superá-lo.


Nesta primeira parte, procedo a uma análise superficial da atual crise econômica mundial, dando ênfase ao sistema financeiro, primeiro como estopim aparente da crise, depois como categoria capaz de expor muitas das fragilidades e das características mais íntimas do sistema capitalista. E na segunda parte, analisam-se as causas reais da atual crise pelo desnudamento das intrincadas relações existentes entre o dólar, o endividamento global, dando-se ênfase à importante relação entre essas categorias e as futuras crises do sistema.


Capitalismo e sistema financeiro.

O palco de todas as grandes crises do capitalismo ao longo de sua história tem sido o sistema financeiro, que é ao mesmo tempo a alma e o calcanhar de Aquiles do mundo dominado pelo capital. Portanto, entender o sistema financeiro (a saber, como este é e como se relaciona com o restante da economia) é vital para um correto entendimento do capitalismo e dos limites históricos deste sistema, determinados em grande medida por suas crises cíclicas, das quais a crise atual é um importante exemplo.


Hipotecas, juros, subprimes e derivativos: os nomes da crise.

Há um consenso mais ou menos formado entre os economistas liberais-burgueses sobre como estourou a crise atual, que embora busque contornar as reais causas da crise, se presta para fornecer uma boa noção dos mecanismos pelos quais as “turbulências dos mercados” crescem e se alastram. Tudo começou nos EUA, centro nevrálgico do capitalismo global, onde já em 2006 deixou-se o primeiro grão da bola de neve escapar morro abaixo, com a chamada crise do subprime. Subprimes eram um conjunto de diferentes formas de empréstimos (desde cartão de crédito até financiamento para carros e imóveis) que se proliferaram nos EUA a partir de 2001, concedidos a clientes sem comprovação de renda e com histórico ruim de crédito – portanto, altamente susceptíveis a não pagar as suas dívidas. O sistema de empréstimos indiscriminados a clientes potencialmente inadimplentes só se sustentava porque os imóveis – a parte mais crítica do subprime – mantinham seu valor em alta. Isso por causa da baixíssima taxa de juros então existente nos EUA, que tornando o crédito barato e facilmente acessível, permitia que as pessoas comprassem casas pagando-as com empréstimos, que a seguir eram pagos através de mais e mais empréstimos (a chamada rolagem das dívidas). Porém, quando por outros motivos o governo dos EUA permitiu que as taxas de juros subissem, a oferta de crédito minguou e ninguém mais pôde pagar suas hipotecas (espécie de contrato de crédito em que o próprio bem adquirido com o empréstimo, em geral imóveis, é dado como garantia ao credor caso o devedor não pague). E como a grande maioria dos devedores deixou de pagar, os credores (nesse caso, os bancos que concederam os tais empréstimos de subprime) foram afundando até entrarem em colapso. O grande estouro da crise ocorreu em setembro de 2008, quando o banco Lehman Brothers, um dos maiores e mais importantes bancos de financiamento do mundo, foi à falência junto com as financeiras Freddie Mac e Fannie Mae, gigantes do setor imobiliário norte-americano, que a seguir foram estatizadas naquilo que se considerou uma das maiores intervenções da História do governo norte-americano no mercado. E na mesma época, a AIG, maior seguradora dos EUA, precisou de uma injeção de 120 bilhões de dólares para ser salva da falência. Era só o começo da crise, que ainda em novembro se alastraria num efeito cascata para além das fronteiras dos EUA, levando políticos e banqueiros do mundo inteiro a abandonaram da noite para o dia seus dogmas sagrados de “livre-mercado” a fim de salvarem o capitalismo agonizante. Sai de cena a “mão invisível” do mercado, entra a “mão pesada” dos trilhões de dólares em recursos públicos injetados no sistema financeiro para salvar e/ou estatizar mundo afora empresas “grandes demais para falirem”, numa mega-operação global de intervenção estatal na economia como não se via no mundo há mais de meio século!

Porém, aos observadores mais atentos fica uma pergunta no ar: como os grandes capitalistas estadunidenses foram tolos a ponto de emprestar tanto para quem simplesmente não tinha como pagar? Como incontáveis gigantes do setor financeiro global, empresas “sólidas” e “confiáveis”, foram capazes de apostar tudo o que tinham em empréstimos simplesmente impagáveis? E como exatamente essa crise dos subprimes se alastrou por toda a economia?

Para responder a essas perguntas, é preciso primeiro entender como as mentes ardilosas e gananciosas de Wall Street foram capazes de vender gato por lebre para o mundo todo.


Derivativos, a alquimia financeira de transmutar lama em ouro.

Como os empréstimos subprime dificilmente geravam ganhos para os bancos que os concediam, tais bancos arquitetaram uma estratégia para tornar os subprimes lucrativos. Para diluir o risco dessas operações, os bancos credores juntaram-nas aos milhares e transformaram a massa resultante em títulos negociáveis no mercado financeiro internacional chamados derivativos, cujo valor era cinco vezes superior ao das dívidas nele embutidas! Como um punhado de capitalistas inescrupulosos conseguiram enganar o sistema financeiro global com esse truque de transmutar sacos de lama em arcas de ouro permanece uma incógnita. Há de se considerar o fato de que esses “sacos” chamados derivativos foram preenchidos com hipotecas de diferentes níveis de risco de “calote”, de forma que, diziam os alquimistas financeiros, as perdas e ganhos se compensariam estatisticamente, permitindo assim que os tais derivativos dessem lucro. Mas mesmo isso não explica como esses derivativos suicidas obtiveram o aval das principais agências internacionais de classificação de risco (de renome até então inquestionável), que deram aos tais derivativos o grau de segurança máxima, indicando-os como mais confiáveis até do que os títulos de dívida do governo brasileiro, por exemplo. Com essa classificação de risco bisonhamente errônea, capitalistas do mundo inteiro passaram a disputar a tapa a aquisição desses títulos, que pela força da procura tiveram então seus preços de mercado elevados drasticamente.

Pior, como os tais títulos contendo hipotecas “podres” eram negociáveis, teve início uma escalada desenfreada de compra e venda desses títulos, que assim incharam seus preços a ponto de passarem a “valer” muito mais do que valiam de verdade! Havia-se formado em torno desses títulos de hipotecas de risco aquilo que se chama de “bolha especulativa”. Bolhas especulativas são o atestado supremo de até que ponto a irracionalidade suicida do “livre mercado” burguês é capaz de chegar, atribuindo-se valores astronômicos (e até mesmo construindo-se patrimônios inteiros) em cima de “produtos financeiros” que não passam de sacos de lama! Tal fenômeno, típico de mercados financeiros “livres” e desregulados, ocorre quando, por conta de uma absurda escalada especulativa, o sistema financeiro passa a hipervalorizar algo que – ninguém sabe! – pouco ou nada vale. Companhias de seguros, bancos, financeiras, fundos de pensão e toda sorte de diferentes tipos de capitalistas e “investidores” oportunistas, crentes de que assim estavam a fazer “um grande negócio”, basearam parcelas enormes de suas riquezas nos tais sacos de lama, enraizando-os de tal forma no sistema financeiro global que este se tornou irremediavelmente infectado por uma verdadeira bomba-relógio. A detonação desta bomba (ou como se diz, o estouro da bolha especulativa) se deu no segundo semestre de 2008, com a falência do Lehman Brothers e a subseqüente queda vertiginosa das bolsas de valores mundo afora. Tornou-se recorrente ao longo da crise ouvir falar na imprensa como a crise fez “sumir” trilhões de dólares em questão de dias. Só mesmo a levianidade da grande mídia burguesa e a ganância cega dos capitalistas não é capaz de enxergar que nada se perdeu, pois não é possível perder aquilo que jamais existiu...

O que começou como aventureirismo inconsequente de alguns poucos grandes capitalistas acabava assim por levar o sistema inteiro à beira do colapso!


O sistema financeiro, alma e calcanhar de Aquiles do capitalismo.

Elaboradas há cem anos, as observações de Lênin sobre o agigantamento do poder do sistema financeiro no moderno capitalismo monopolista (chegando-se ao ponto do sistema produtivo se tornar totalmente dependente do capital financeiro) não podiam ser mais válidas para o mundo atual. Indústrias e demais empresas do setor produtivo necessitam cada vez mais do “mundo das finanças” para captar recursos, através de empréstimos, vendas de ações ou (como se torna cada vez mais corriqueiro) aventuras especulativas das mais complexas e arriscadas. Afinal de contas, especular, e não mais produzir, é o que dá grandes lucros nos dias atuais de libertinagem financeira. E dada a lei da selva da “livre concorrência”, em que os capitais menores são constantemente engolidos pelos maiores (através de falências e/ou fusões), lucrar (e portanto, especular) significa sobreviver. Inclusive o poder de classe capitalista, num mundo corporativo crescentemente controlado por executivos contratáveis e demissíveis (que portanto, não são proprietários), depende do poder dos acionistas como forma de dar continuidade às velhas relações de classe que caracterizam o capitalismo.

O sistema financeiro, porém, não só é a espinha dorsal do mundo dominado pelo capital como também, como não podia deixar de ser, guarda muito das principais características e fragilidades desse sistema, e por tabela, ensina muito sobre ele.

Como o mega-capitalista e crítico neoliberal George Soros observou com espanto, o desencadear da atual crise se deveu à completa incapacidade do sistema capitalista em avaliar os riscos dos novos e cada vez mais complexos “instrumentos financeiros” (como os sacos de lama do subprime) que bancos e agências financeiras criam a cada dia, tendência que só deve se agravar com a crescente complexidade de tais atividades. Pior, o que a atual crise prova é que, em mais de duzentos anos de história de capitalismo, este sistema não foi sequer capaz de desenvolver um método seguro e preciso mensurar valores! Os constantes estouros de bolhas especulativas, presentes em quase todas as crises cíclicas que assolaram o capitalismo desde os seus primórdios e até os dias atuais, são prova cabal dessa incapacidade. Assim, não é de surpreender que economistas burgueses falem que essa é uma “crise de confiança” no sistema e em suas instituições!

Mas por que o capitalismo padece dessa “incapacidade de avaliar corretamente riscos e valores”?

Há vários fatores que podem responder a essa pergunta. Uma parte da explicação é dada pelas amarras de certos preconceitos teóricos enraizados nas mentes da elite financeira do sistema. O ex-presidente do Banco Central norte-americano (Fed), Alan Greenspan, homem forte da política econômica do Império por quase vinte anos até sua saída do Fed em 2006 e um dos artífices da moderna ordem global neoliberal, é adepto de uma corrente de pensamento auto-intitulada “objetivismo” (ou “libertarianismo”), uma filosofia extremista e ultra-dogmática que apregoa entre outras coisas a “virtude do egoísmo” e um “fundamentalismo de mercado”, para o qual “os mercados sempre tendem a um equilíbrio natural” e o desenvolvimento das nações só seria possível “se cada indivíduo puder buscar livremente seus próprios interesses”. Tal fundamentalismo, antes uma crença religiosa do que um ramo das ciências econômicas, não possui quaisquer fundamentos na realidade concreta, como bem observou George Soros, ao lembrar que “foi a intervenção [do Estado] nos mercados, e não a livre ação dos mercados, que evitou que os sistemas financeiros entrassem em colapso.” Não obstante, tal fundamentalismo se tornou a ideologia econômica dominante no mundo inteiro nos anos 80 e 90, servindo de base teórica para o que se convencionou chamar de... Neoliberalismo! Assim, conforme observou o professor Carlos Antonio Luque, da Universidade de São Paulo (USP), o “senso comum” reinante entre os economistas da atualidade “parte do pressuposto de que os agentes econômicos são racionais e que a crise é uma anomalia. Essa postura condicionou a regulação e as políticas dos governos para lidar com a crise”, afirmou o professor, para quem o fato de “todos” preverem um 2010 “melhor” também se relaciona com a enorme dificuldade que os cérebros da economia burguesa têm para admitir que seu sistema é falho e que as crises não são meras “anomalias”... O mais incrível, no entanto, é que tal cegueira dos "homens do capital" foi incapaz de enxergar que uma repetição da História estava a ocorrer debaixo de seus narizes: de fato, a última grande crise do capitalismo, a Grande Depressão de 1929, ocorreu em parte porque os economistas da época também foram incapazes de ver além de seus dogmas liberais-burgueses e admitir que seu “livre mercado” desregulado caminhava para a completa auto-destruição. Só mesmo a ganância dos que cultuam a “virtude do egoísmo” consegue ser cega a ponto de não aprender com os próprios erros...

Outra parte da explicação vem das dificuldades crescentes que os “tomadores de decisões” do sistema capitalista, em especial do sistema financeiro, têm encontrado em tomar decisões corretas, por conta das contradições dos quais esses são prisioneiros e do fato de que, nos últimos anos, as inovações financeiras acabaram por superar a capacidade técnica de avaliação de riscos, de forma que o moderno sistema financeiro capitalista não consegue mais suportar o peso de sua própria complexidade. Tudo começou com o neoliberalismo na década de 80, quando os mercados financeiros mundiais começaram a ser desregulamentados, tendo sua supervisão governamental progressivamente relaxada, até que essa virtualmente desapareceu. Com o tempo, os “produtos financeiros” (tal como subprimes, derivativos e outros sacos de lama) adquiriram tamanha complexidade que até mesmo as autoridades governamentais se tornaram tecnicamente incapazes de avaliar os riscos destes, passando a se utilizar dos sistemas de gerenciamento de riscos do “mercado”, que pasmem, se baseavam nas informações fornecidas pelos próprios criadores dos sacos de lama! É como deixar a raposa cuidar do galinheiro! Dessa maneira, não surpreende que às vésperas da eclosão da crise, em setembro de 2008, o “mercado” ainda classificasse os subprimes como de “confiança máxima”... Quando o Estado se faz ausente, o mercado deita e rola, tornando assim inevitável que novas “bolhas especulativas” cresçam e estourem.

E cada vez que estoura uma dessas “bolhas”, exacerba-se o que o sistema tem de pior. Com a quebradeira no setor imobiliário norte-americano, a crise da habitação no Império agravou-se a níveis alarmantes, conforme atestou a relatora especial da ONU para o direito à moradia, Raquel Rolnik: “[nos EUA] é muito difícil achar moradia acessível, as pessoas estão gastando 80%, 90% da renda com aluguel ou parcela do financiamento”, disse Raquel, que em sua recente visita aos EUA presenciou inúmeras situações tais como pessoas morando em carros ou em “cidades de barracas”, além de famílias inteiras sem teto ou em apartamentos superlotados, divididos com outras famílias – tudo isso em pleno século XXI, e no país mais rico da Terra! Ao mesmo tempo, sobram casas para se vender e alugar no país, proporcionando uma típica situação capitalista: casas vazias de um lado, pessoas sem teto de outro, tudo simultaneamente! Enquanto isso, também a corrupção corporativa encontra terreno fértil na crise, quando nos EUA torna-se cada vez mais comum que capitalistas embolsem para si e seus comparsas o dinheiro dado pelo governo para socorrer suas empresas...


O desfecho da crise.

Em resumo, foi a venda e compra cega e irresponsável de “sacos de lama” (ou em outras palavras, títulos recheados de hipotecas impagáveis) por instituições financeiras do mundo todo que causou a detonação e o alastramento da crise, de origem estadunidense, para os principais bancos e companhias financeiras do mundo. E daí para se espalhar dos bancos para a economia real (fábricas, lojas, etc.) foi algo quase imediato, já que, com os bancos em crise, rareou o crédito para as empresas, muitas das quais dependiam desse crédito para sobreviverem. Até bancos que não se envolveram na orgia especulativa dos subprimes se viram em dificuldades, desde que, por exemplo, fossem credores ou tivessem ações dos bancos que adquiriram os tais sacos de lama. Com a quebradeira se generalizando, palavras como desemprego em massa, recessão e crise tomaram conta dos noticiários mundo afora, especialmente no chamado “mundo desenvolvido”, mas em maior ou menor grau no planeta inteiro. Como conseqüência, em 2009, a economia mundial como um todo encolheu pela primeira vez desde o fim da Segunda Guerra Mundial! Já o Brasil, diferente do que os lulistas preferem acreditar, escapou do pior da crise mais por sua posição geográfica do que por “competência” do governo. O fato é que os países capitalistas periféricos como um todo sofreram bem menos do que as grandes potências da Europa e da América do Norte, e essa é a única coisa que pode aliviar as consciências dos outrora “revolucionários” petistas quando eles ouvem Delfim Neto dizer que Lula teria “salvado o capitalismo brasileiro”...

Mesmo assim, essa crise ainda traz muitos riscos para os países periféricos, em especial a América Latina. Embora grande parte dos economistas afirme que o “pior da crise” já passou e que a recuperação já começou, ainda há indicadores do contrário (como a persistente fragilidade da economia estadunidense). Não há consenso sobre o futuro dessa crise, embora sejamos tentados a querer acreditar que o pior já passou e que, pelo menos por enquanto, as coisas voltem a melhorar em 2010.


Os riscos para as forças progressistas da América Latina.

Quando se torce pelo fim da crise, não se trata com isso de somente rechaçar o velho bordão extremista do “quanto pior melhor”. Há um risco político enorme relacionado a essa crise e à possível continuidade dela. Nos EUA, as eleições parlamentares de novembro podem marcar uma derrota do partido do cada vez mais impopular presidente Obama, com um reforço do poder dos setores mais fanáticos e belicosos da direita estadunidense. E para a América Latina, embora esta tenha, pela primeira vez na História, sofrido menos com as crises dos países centrais, ainda há o risco de os efeitos dessa crise (notadamente o aumento do desemprego e da pobreza) desgastarem as forças progressistas até então em ascensão na região. Pois o fato é que essa crise (e principalmente, o risco de continuidade desta), ao contrário do que se poderia pensar, tem potencial para golpear duramente os processos revolucionários da América Latina. Embora isso abra brechas para uma maior radicalização desses processos revolucionários (como a aceleração das estatizações na Venezuela), elas podem e devem também aumentar o descontentamento contra tais governos (como ficou claro com o caso recente da escalada da inflação, também na Venezuela).

No entanto, pior ainda ficou Cuba, que parece ter sido de longe o país que mais sofreu com essa crise na América Latina. Há quem pense que Cuba, “por ser socialista”, está distante dos perigos da crise capitalista. A estes, basta lembrar que a crise da dívida na década de 80 teve importância decisiva na derrubada do socialismo nos países do Leste Europeu – notadamente Hungria, Iugoslávia e Romênia. De fato, o ano de 2009 foi um dos piores para a economia cubana desde o “período especial” do fim da União Soviética. Para a ilha socialista, a crise significou queda no turismo, na remessa de dólares de cubano-americanos e queda vertiginosa no preço de seu principal produto de exportação, o níquel. A situação foi tão grave que o Congresso do Partido cubano, que ia ser realizado em dezembro passado, acabou sendo adiado para um futuro indeterminado por causa da crise. É de preocupar os possíveis efeitos que um novo agravamento dessa crise traria à Revolução Cubana, que por tudo que representa às forças anticapitalistas e revolucionárias do mundo, traria também conseqüências ainda maiores para as forças políticas que a Revolução inspira na América Latina e no mundo.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Conflitos agrários: quem é mesmo o bandido?

No momento em que o governo Lula busca impor em Brasília a sua polêmica “lei dos direitos humanos”, a grande mídia corporativa encontra no que o projeto de lei tem de mais progressista (a defesa dos direitos do povo trabalhador do campo), uma oportunidade para lançar nova carga de ataques contra os movimentos sociais do campo - em especial o MST. Não é de hoje que o povo do campo é acusado pelos setores mais tacanhos e raivosos da direita brasileira de atos como “banditismo” ou “invasão de propriedade”, mas em épocas como essa, de recrudescimento da perseguição aos movimentos sociais do campo, é sempre bom relembrar os verdadeiros fatos que nunca aparecem nos jornalões e são sempre censurados nas telinhas.

Quem é o bandido de verdade? E quem é a vítima de verdade? Seria a “vítima”, conforme afirma o “consenso” da grande mídia, o latifundiário do agronegócio? Justo aquele que obteve suas imensas extensões de terras através do roubo, da “grilagem” (falsificação da escritura de posse), da intimidação e da violência, até mesmo expulsando a bala os antigos camponeses que nelas moravam, conforme acontece ainda hoje, todos os dias, no interior do Brasil? Seriam “vítimas” esses “senhores” que, quando não mantém seus latifúndios totalmente improdutivos apenas para lucrar especulando, usam-nos pra plantar soja pra exportação em culturas totalmente mecanizadas (ao invés de dar emprego e plantar comida pro povo), expandindo suas terras às custas da destruição indiscriminada da Amazônia, do cerrado do Centro-Oeste, etc... Seriam esses “senhores” vítimas?

E porque seria “bandido” o MST, justo aquele que denuncia e combate essa verdadeira bandidagem da nossa elite latifundiária ao ocupar essas “propriedades” ilegais? Terras obtidas por meios criminosos ou que não cumprem a função social de produzir (o chamado “latifúndio improdutivo”) são o alvo único das ocupações do movimento, que assim na verdade, quando ocupa uma terra, está tão-somente fazendo valer a lei!

Mais do que cumprir a lei, a luta pela terra garante a sobrevivência dos milhões de trabalhadores deserdados da terra, que expulsos do campo pela violência do coronelismo ou pelas injustas “leis do mercado”, encontram no movimento dos sem-terra uma forma de escapar da violência e miséria da cidade grande, conquistando pela posse da terra um emprego e um futuro digno para suas famílias. E por tabela, ainda contribuem para diminuir o inchaço das grandes metrópoles, geram renda e melhora dos preços dos alimentos em torno das regiões onde se assentam, e proporcionam uma via de desenvolvimento popular, através das cooperativas de agroindústria do movimento, que agregam valor ao produto agrícola e levam o desenvolvimento para o interior, tudo de forma inclusiva, sem gerar miséria e concentração de renda que nem o agronegócio. É a chamada Reforma Agrária, processo básico para o desenvolvimento de qualquer nação e que foi seguido por todos os países do chamado “Primeiro Mundo” – mas que no entanto, em pleno século XXI, ainda não foi feito no Brasil.

Só mesmo o ranço retrógrado da direita é capaz de tachar isso tudo de “bandidagem”. Inversão dos fatos é mesmo a regra na grande mídia quando o assunto são as lutas no campo. Não é de se surpreender. Há em jogo um poderoso interesse de classe, a classe dos latifundiários, que é dona da maior bancada de interesses do Congresso Nacional, ocupa postos-chave do Ministério da Agricultura, a presidência do Conselho Nacional de Agricultura, e acumula um grande poder econômico no Brasil, país com a segunda maior concentração fundiária do planeta (só perde para o Paraguai) e em que, segundo o IBGE, 1% dos proprietários rurais ocupam metade das terras cultiváveis! A defesa dos interesses e “verdades” dessa classe ganha assim inevitavelmente na grande mídia privada um apelo proporcional ao peso econômico desta.

De fato, quando o assunto é a defesa dos privilégios dos poderosos, a grande mídia privada sai com tudo. Justo nesse momento em que primeiro o Confecom, depois a “lei de diretos humanos” proposta pelo governo, trazem à tona a discussão pelo direito à informação correta e imparcial, o papel social da propriedade midiática e os danos do monopólio da grande mídia, esta resolve intensificar os ataques contra os movimentos sociais do campo, censurando e invertendo os fatos de forma sistemática, simplesmente porque os próprios fatos são contra o latifúndio. Foi assim no caso da “destruição” dos pés de laranja da Cutrale, em que se ignorou completamente na grande imprensa o fato de que as terras da propriedade eram ilegais, há décadas roubadas do patrimônio público pela grilagem. E a inversão dos fatos chega a atingir proporções até mesmo cômicas, quando uma revista notoriamente mentirosa e defensora de tudo que há de mais atrasado no Brasil, vem acusar o MST de “fazer fortuna” com a destruição da Amazônia, quando todos sabem que é o agronegócio que tem lucrado horrores com a derrubada da Floresta Amazônica para expansão de suas plantações de soja!

No fundo, com respeito ao conflito agrário, o que realmente é insuportável aos poderosos é ver o povo lutando por seus direitos, por seu merecido quinhão dos ideais de “liberdade” e “democracia” tão vendidos por aquela mesma minoria para quem “liberdade” e “democracia” consistem tão-somente na “sua” liberdade e na “sua” democracia. É o povo se organizando pelo que é seu, entre si e para si, criando assim a semente de um poder de classe dos trabalhadores, isso é o que realmente incomoda não só os latifundiários, mas também todos os segmentos das classes capitalistas do Brasil.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Piada: Honduras decide "processar militares golpistas"

A cara de pau dos gorilas que roubaram o Estado para si em Honduras parece não ter limites. Em decisão hilária, o Ministério Público do regime hondurenho decidiu abrir processo contra os militares que depuseram o presidente legítimo do país, Manuel Zelaya, em um golpe de Estado orquestrado em junho do ano passado. Por ter arrastado Zelaya à força, ainda de pijama, para fora do país, a cúpula das Forças Armadas hondurenhas seria processada por "abuso de autoridade". Pode até ser que o processo vingue, pois é nas suas minúcias que a piada adquire razão de ser. A ira do regime de Micheletti para com os realizadores do golpe tem algum fundamento, haja visto que o próprio líder do governo golpista tem insistido em afirmar que foi um "erro" mandar Zelaya para fora do país. De fato, seria muito melhor aos usurpadores do Estado hondurenho se desde o início Zelaya tivesse sido encarcerado em algum porão militar em Honduras, para ser a seguir "suicidado" e calado para sempre. Em vez disso, Zelaya se viu livre para do exterior organizar a resistência ao golpe e retornar ao país de forma triunfal, mantendo-se até hoje refugiado na embaixada brasileira, de onde serviu como símbolo e inspiração vitais para o fracasso da farsa eleitoral golpista de novembro passado.

No meio disso tudo, o que arranca risadas mesmo é a "cobertura" da grande mídia com relação ao golpe, que continua a insistir que a tentativa de Zelaya de realizar um plebiscito, estopim para a sua deposição, era "para Zelaya poder se reeleger". Ignoram cinicamente que o plebiscito era para convocar uma Assembléia Constituinte, e que portanto nem sequer havia como falar em "reeleição", já que a Assembléia que decidiria sobre isso sequer chegou a ser convocada.

Confira aqui as verdadeiras razões que levaram ao golpe em Honduras.

Isto é uma vergonha: Boris Casoy, a voz da elite brasileira, é flagrado ao vivo xingando trabalhadores.

Aconteceu na véspera do ano novo. Na saída aos comerciais do Jornal da Band, apresentado por Boris Casoy, o “grande e respeitável jornalista” deu sua opinião sobre uma simplória reportagem em que garis desejavam “feliz ano novo” aos telespectadores. Só esqueceram de avisar a ele que os microfones ainda estavam ligados. Assim, as palavras do dito jornalista foram ao ar, entre gargalhadas do seu próprio autor, ao vivo e para todo o Brasil:

"Que merda: dois lixeiros desejando felicidades... do alto de suas vassouras... dois lixeiros... o mais baixo da escala do trabalho..."

Clique aqui para assistir no Youtube. É verdade mesmo, conforme admitiu mais tarde o próprio Boris Casoy!

Tal episódio, a exemplo da recente defesa escancarada da ditadura por parte de um jornalista de grande influência regional, é sintomático sobre qual o caráter e a quem serve a nossa grande mídia. É ingênuo achar que isso é uma “simples gafe” ou um “caso isolado”, não existem coincidências! Boris é uma personalidade pública importante do Brasil e da mídia, e entender porque pessoas como ele são “personalidades públicas” ajuda e entender porque o Brasil é o que é. De fato, a voz que se enche para ridicularizar preconceituosamente o gari é a mesma que criminaliza os movimentos sociais, que monopoliza o "pensamento único" da grande mídia, da Globo à Bandeirantes, que usa esse poder para manufaturar presidentes (fez com Collor e tenta fazê-lo com o Serra) e para enraizar a cultura de classe capitalista no povo trabalhador, buscando assim garantir a perpetuação das relações de produção capitalistas e das relações de dominação e exploração daí decorrentes. É a voz que fez a ditadura mais retrógrada que esse país já viu e que hoje ainda tem a cara de pau pra falar em "modernidade". Não, não é a voz do Boris, mas sim a voz de toda uma classe, classe essa que, não por coincidência, tem no "sr" Boris "Lacerda" Casoy um de seus porta-vozes mais fervorosos!

De fato, os risos de desprezo e “superioridade” contra o trabalhador honesto não brotam de apenas uma garganta. Brotam do sentimento geral da elite brasileira, do nojo e do desprezo que os donos do poder sempre nutriram para com o povo que limpa suas ruas e suas latrinas, que produz nas suas fábricas e que lhe serve diariamente atendendo aos seus mais íntimos caprichos. É raiva de toda uma classe dirigida à “ralé” da qual não eles suportam admitir que são totalmente dependentes!

O riso do dito jornalista é também em essência do mesmo tipo de anti-jornalismo de certas publicações impressas decadentes que existem por aí, preconceituoso, arcaico, partidário fanático de tudo que há de mais raivoso e retrógrado em nosso país, e por isso mesmo, ultrapassado e cada vez mais em vias de extinção.

Depois dessa, sempre que vermos Boris Casoy na TV novamente, nos perguntaremos: "se ele disse aquilo, o que mais ele não deve dizer ou pensar sempre que está longe das câmeras"?