segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

De Praga a Havana

Quem passeia pelas vizinhanças de Vyšehrad, na zona sul de Praga, capital da República Tcheca, irá fatalmente se deparar com a espantosa visão da ponte de Nuselský. Construída nos anos 70 pelo antigo regime socialista da então Tchecoslováquia, a hoje principal artéria de ligação do trânsito do sul ao centro da capital tcheca é um colosso de concreto de quase 500 metros de comprimento e mais de quarenta de altura, tão grande que por dentro de si passam duas vias da linha C do metrô de Praga. Obra de vital importância para o transporte na capital tcheca e até mesmo cartão postal da cidade, Nuselský no entanto aparece com outros olhos para quem vive debaixo dela. Pois o que há de mais inacreditável sobre a titânica ponte é que, sob o imenso vão desta, no vale de Nusle, há todo um bairro repleto de prédios residenciais, onde vivem pessoas que foram simplesmente ignoradas pelos que decidiram construir o gigante. Vista das ruas e prédios escondidos debaixo de Nuselský, a ponte adquire uma onipresença faraônica, capaz de encolher quase à insignificância a vida das pessoas e transmitir a qualquer visitante a incômoda sensação de ter sido transportado de súbito a uma espécie de futuro distópico e decadente. Sob esses diferentes pontos de vista, a visão dos que se beneficiam da ponte e dos que são obrigados a conviver no vale sob ela, Nuselský torna-se um símbolo bastante esclarecedor do que foi o socialismo no leste europeu: muito utilitarista, mas também bruto demais; bastante importante sob os principais aspectos necessários à vida das pessoas, mas ao mesmo tempo, frequentemente insensível para com essas mesmas pessoas.


Foi com o espírito de mudar aquilo que precisava ser mudado que, em 1968, o povo tcheco-eslovaco foi às ruas em apoio aos seus líderes do Partido Comunista quando esses anunciaram a realização de reformas no sistema visando, nas palavras destes, implementar na Tchecoslováquia uma outra forma de socialismo, um "socialismo com face humana". Mesmo desconsiderando a infeliz escolha de palavras (pois mesmo com todos os seus problemas, não há nem nunca houve sistema mais humano do que quaisquer dos socialismos), é de se louvar a decisão dos comunistas tchecos de 1968, que souberam captar a voz das fábricas e das ruas que dizia que as coisas não iam bem e tiveram a sensibilidade de seguir as reivindicações do seu povo por mudanças, iniciando assim um processo de transformações que chamou a atenção e encheu de expectativas a comunistas e amantes do progresso e da liberdade em todo o planeta. Porém, tão logo iniciou, o processo conhecido como a Primavera de Praga foi esmagado pelos tanques das tropas do Pacto de Varsóvia, sob o comando do conservadorismo burocrático vigente na União Soviética da era Brejnev, que decidiu que o protagonismo popular dos tchecos e seus anseios por mudança eram "uma ameaça ao socialismo", uma subversão tão perigosa ao monolitismo stalinista que justificava a sua supressão pela força bruta.


O trágico destino da Primavera de Praga serviu para destruir de vez a imagem do socialismo no mundo, dando munição aos capitalistas que sempre o apresentaram como "irremediavelmente autoritário", além de dividir os comunistas europeus entre os que apoiavam e os que denunciavam a agressão à Tchecoslováquia, levando os primeiros em em geral a se fechar cada vez mais no seu conservadorismo, os últimos a caírem numa repulsa anti-soviética que os desviou por caminhos como o eurocomunismo, e ambos a um crescente definhamento e isolamento político, marcando a curva descendente, o começo do fim, do socialismo na Europa. Porém, pior que tudo isso, com a destruição violenta da "primavera de Praga", Moscou acabou por transmitir uma clara mensagem aos povos da Tchecoslováquia e de todo o leste europeu: só podia haver uma forma de se fazer socialismo, e estavam fechadas quaisquer possibilidades de mudanças dentro dos marcos deste sistema. Assim, se não podia realizar seus anseios dentro de tal ordem, e não podendo escolher nada além do seis ou sessenta, o povo decidiu cada vez mais pela rejeição ao sistema, que se consumou duas décadas depois com a destrutiva onda anticomunista de 1989. Hoje, os comunistas tchecos se agrupam em torno do Partido Comunista da Boêmia e Morávia, que mantendo algo da tradição da Primavera de Praga, é conhecido – e denunciado por stalinistas – por manter uma certa crítica ao passado socialista de seu país, o que não por coincidência faz com que tchecos tenham o único partido comunista do leste europeu, fora da antiga União Soviética, com representação no seu Parlamento nacional e com expressiva influência política sobre seu povo.


E o socialismo cubano, o que tem a ver com isso? Tem a ver que, a partir de abril deste ano, durante o 6º Congresso do Partido Comunista de Cuba, o país terá a oportunidade de discutir aquela que poderá ser a maior onda de mudanças no socialismo da ilha desde a revolução em 1959. Acompanhando a realização de tal Congresso, as forças progressistas e libertárias do mundo esperam ansiosas por ver ali um pouco do espírito da Primavera de 1968, da mesma forma que o povo cubano espera desse Congresso uma maior realização dos seus anseios por resolver os problemas que afligem o dia a dia do cubano comum, problemas que têm causas muito mais profundas do que tão somente o criminoso bloqueio imposto pelos Estados Unidos à ilha, conforme o próprio presidente cubano Raúl Castro tem admitido em diversas ocasiões.


Assim, nesta que é hoje a pátria do socialismo no mundo, o último bastião da causa revolucionária internacionalista, surge no horizonte uma nova oportunidade de os comunistas corrigirem seus erros e mostrarem ao mundo uma forma de socialismo que melhor apele a anseios populares universais, permitindo ao comunismo sair de sua posição defensiva dos úlitmos vinte anos e voltar a avançar politicamente. Não mais a velha prática de fazer o que for necessário para atravessar o vale, custe o que custar, mas de antes ouvir o que as pessoas lá embaixo no vale têm a dizer. Não mais apenas fazer "o que for melhor" para o povo, mas antes ajudar este a se organizar para que o próprio povo possa fazer para si aquilo que julgar melhor. Em outras palavaras, não mais a dureza desse "utilitarismo" puro e simples, mas também, como nas palavras de Che, a ternura da qual o socialismo não pode prescindir. Clima propício para mudanças radicais dentro do socialismo existe, com a crise mundial do capitalismo pondo em xeque os valores neoliberais e com a América Latina fecunda de governos progressistas (embora seja preciso ressaltar, não socialistas) amigos de Cuba.


Que, a exemplo dos reformadores de 1968, o Partido cubano tenha a coragem, a força e a sensibilidade de mudar o que for preciso, dentro dos marcos do socialismo, pela evolução e aprimoramento deste sistema. E que nenhum comunista sincero se ponha contra as necessárias mudanças dentro da ordem socialista, do contrário se correrá o risco de se repetir a história, primeiro como tragédia e depois como farsa, "ensinando" aos cubanos que eles deveriam pensar em mudanças fora dos marcos do socialismo.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Tunísia e Egito: considerações sobre a "primavera dos povos" do mundo árabe

Primeira Consideração: o sionismo, o grande capital e o Império saem derrotados.

A queda dos regimes autoritários de Hosni Mubarak no Egito e de Zine Ben Ali na Tunísia representa, ainda que parcialmente, uma importante derrota para o sionismo, o grande capital transnacional e o Império norte-americano. O primeiro derrotado foi o capital, por ouvir mais uma vez a sua ladainha do "livre mercado" levar um sonoro "não" das ruas. Até recentemente elogiado pelos "especialistas de mercado" como um obediente seguidor da cartilha neoliberal e "exemplo" de desenvolvimento e prosperidade, a Tunísia foi redimida pela ação de seu próprio povo, que cansou de ouvir calado aos "especialistas" e decidiu mostrar ao mundo a sua própria voz, a voz da verdade dos explorados. A seguir, com a queda do autocrata egípcio, o Império e o sionismo perderam um dos governos mais lacaios das políticas imperiais dos EUA e de Israel na região. O Imperialismo tem agora, ainda que por enquanto, dois aliados a menos no mundo árabe, e a onda ainda segue o seu caminho.

Segunda Consideração: as causas estruturais desta e das próximas revoluções.

Muito além da auto-imolação do jovem tunisiano Mohamed Bouazizi, que se incendiou até a morte em protesto contra o fechamento de seu pequeno comércio de rua e contra a corrupção das autoridades que tentaram suborná-lo, o estopim da crise revolucionária que hoje subverte a realidade do Mundo Árabe tem raízes no desemprego e na crise de escassez de alimentos. Estas, por sua vez, são resultado direto do desenvolvimento do capitalismo e de suas contradições (como o desemprego estrutural tecnológico, a crise "financeira" global de 2008 e a expansão das relações capitalistas ao campo, no chamado agronegócio), mas também resulta da Crise Ambiental e seu impacto direto nas safras agrícolas. Fica assim demonstrado o potencial explosivo que o desenvolvimento simultâneo do "aquecimento global" e das contradições do capitalismo representam. O inevitável aguçamento das crises ambiental e econômica irá fatalmente multiplicar as crises revolucionárias e fará de Egito e Tunísia os laboratórios da História do século XXI, de forma que, contraditoriamente, o crescente sofrimento dos povos do mundo será o mesmo caldo fértil capaz de elevar a consciência política destes povos rumo à sua emancipação, levando-os a enfrentamentos cada vez mais radicais e politizados contra seus opressores mais imediatos, sejam eles "ditaduras" ou "democracias fortes". O "vento da mudança" que hoje se espalha pelos países do mundo árabe pode também ser interpretado como uma repetição da onda anti-neoliberal que varreu a América Latina há uma década, conduzindo ao poder governos progressistas e/ou revolucionários por todo o continente, demonstrando que a chama de contestação contra a injusta ordem global capitalista está longe de se apagar, e na verdade vem reavivando.

Terceira Consideração: o "ocidente" e sua democracia "dois pesos e duas medidas".

Salta aos olhos a hipocrisia dos líderes políticos da Europa e da América do Norte e de seus "formadores de opinião" da grande mídia, quando estes comemoram a chegada da "democracia" nos países árabes. Não eram "livres" até agora pouco esses grandes aliados do "ocidente democrático"? Se não, por que os mandachuvas da ordem global capitalista apoiaram com tanto esmero tais regimes, fechando os olhos por décadas a todos os abusos e violações dos direitos humanos cometidos por seus grandes amigos no oriente médio? Logo no início dos protestos, os grandes "guardiões da liberdade e dos direitos humanos" do ocidente negaram qualquer necessidade de mudança nestes países, inclusive tachando as manifestações populares de "perigosas". Um caso emblemático desse cinimso dos donos do mundo foi proporcionado pelo vice de Obama, Joe Biden, que duas semanas atrás sustentava enfaticamente que Mubarak "não era ditador" e que não deveria renunciar. Agora, porém, que o tirano egípcio é escorraçado pelo seu próprio povo e fica impossível esconder a realidade, o próprio Biden vem a público saudar o "dia histórico" da chegada da "democracia" no Egito... Por mais poder que tenham para falsificar os fatos e manipular a opinião pública, até mesmo os donos do mundo se veem obrigados a reescrever suas verdades quando o povo decide escrever a História.

Quarta Consideração: como qualquer autoritarismo sempre derruba a si mesmo.

As revoluções tunisiana e egípcia evidenciam mais uma vez o quanto os instrumentos de opressão usados por poucos para controlar a maioria facilmente se voltam contra seus próprios arquitetos. Pois o fato é que poucos no mundo faziam idéia do tanto que os povos tunisiano e egípcio odiavam os seus governantes, e talvez estes próprios governantes imaginassem menos ainda. Não fosse toda a censura e a imposição de pensamentos únicos sobre os seus povos, Ben Ali e Mubarak seriam capazes de preceber o verdadeiro estado de espírito de seus governados e realizar "reformas" capazes de perpetuá-los no poder. Mas precisamente porque eram tirânicos e autocráticos, não tiveram a percepção (e provavelmente, muito menos a vontade) de fazê-lo. A grande tragédia de todo governo tirânico e/ou autocrático que existiu ou existirá, seja qual for o tipo de sistema social que ele governa, é que a sua incapacidade de ouvir a voz do povo, sua obssessão em fazer sempre as coisas do seu jeito, e não do jeito que a maioria prefere, faz acumular um descontentamento surdo que, proibido de se expressar, sempre acaba um dia por explodir como numa panela de pressão, onde quanto maior a (o)pressão, mais violento é o estouro, tão logo surja uma válvula de escape. A radicalidade de tal explosão se manifesta numa rejeição sistemática a tudo aquilo que se relaciona com o antigo regime, de forma que todas as realizações do regime destituído, para o "mal" ou para o "bem", passam a ser postas em xeque. É neste ponto específico, e somente neste, que a onda revolucionária do mundo árabe encontra paralelo nos acontecimentos vividos no leste europeu em 1989.

Quinta Consideração: a luta (pode) estar apenas começando.

Embora os povos tunisiano e egípcio tenham vencido uma árdua batalha ao derrubar os tiranos que os oprimiam, a luta por sua emancipação encontra-se apenas nos seus estágios iniciais. Ambos os países vivem hoje uma situação de "processo revolucionário em curso", um momento em que a questão em torno da "grande política", isto é, aquela política que trata e/ou questiona as estruturas da sociedade, se torna mais aberta do que nunca. É um ponto de inflexão que vai definir os rumos do país, podendo (ou não) levar o curso da História a guinadas antes jamais imaginadas. Porém, para trilhar tais rumos, consolidando sua revolução e impedindo que ela morra no nascedouro, é preciso que os povos desses países tenham consciência da necessidade de irem além. É preciso não apenas derrubar governos, mas crias novas formas de governar; não apenas destruir o velho, mas também ter a convicção, a coragem e a organização para construir o novo. Em outras palavras, para seguir avançando, é preciso passar da revolução puramente política para a revolução social. Do contrário, estes povos que hoje iniciam as suas revoluções voltarão a ser tragados pela velha ordem, dessa vez disfarçada de "novo". Este é o risco: muda-se algo para que tudo permaneça como está. Externamente, tais países sofrerão fortes pressões para mantê-los subordinados à ordem capitalista global, denunciando-se na grande mídia e (retaliando-se) nos fóruns econômicos qualquer "irresponsabilidade" ou "loucura" que supostos novos governos revolucionários ousem levar adiante. E internamente, em especial no caso do Egito, há o perigo que os militares, historicamente muito ligados aos interesses dos Estados Unidos, interfiram em qualquer tentativa de se romper com a subordinação egípcia ao sionismo e à dominação do Império.